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2020: o primeiro ano do resto de nossas vidas

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 31 de dez. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 15 de mar. de 2021

Ao traçar algumas linhas sobre o inesquecível ano de 2020, veio-me à memória o título de um filme da década de 1980 - O primeiro ano do resto de nossas vidas. O filme trata da relação entre sete amigos, recém saídos da pulsante vida universitária, que se deparam com a crua realidade da vida adulta: as inseguranças do ingresso na vida profissional, a instabilidade dos laços afetivos e, como parte do pacote, nenhuma perspectiva de voltar para a proteção com que contavam pouco antes da sonhada formatura.


o eterno retorno ou o ouroboros


Numa dessas tantas provas de que a vida é cíclica e opera por macros e micros dimensões, penso que este enredo dialoga muito bem com os desafios que nos trouxe 2020, o ano que nos lançou, forçosa e coletivamente, nas cruezas da vida adulta da humanidade. Nos deparamos não apenas com o novo coronavírus - algo da ordem do imponderável - mas, principalmente, com as consequências de nossos próprios atos frente às exigências do tempo presente.


Dizem que os mais sólidos aprendizados se dão pelo amor ou pela dor. Ou, quem sabe, por um misto de ambos: uma dor amorosa ou um amor dolorido. 2020 atuou, nessa medida, como um verdadeiro mestre: um ano que nos provocou sem trégua e exigiu de nós a criação de mecanismos para enfrentá-lo da melhor maneira possível.

Aprendemos a duras penas que estamos definitivamente conectados, não só com quem vive do outro lado do globo, como com outras formas de vida, mesmo as supostamente mais insignificantes. Depostos de nosso lugar de soberania, 2020 nos trouxe a possibilidade de uma lucidez necessária sobre o lugar que ocupamos no mundo e as responsabilidades daí decorrentes.


O ano foi passando com a promessa de que tudo seria provisório e eis que ele termina com a impressão oposta: a de que tudo continuará, como num dia após o outro, e que talvez tenhamos experimentado apenas um aperitivo do que virá a ser o prenúncio de uma nova era. De todo modo, a mudança no calendário não deixa de ser uma oportunidade para avaliarmos sobre como passamos por 2020 ou de como este inusitado ano passou por nós.


Em termos da vida em coletividade e mais especificamente, no âmbito da educação, penso que tivemos importantes efeitos:


Primeiro: fomos postos à prova e nos percebemos mais inventivos e criadores do que poderíamos supor. Significa que não somente nos adaptamos à nova realidade, de forma reativa, mas que soubemos nos compor com ela, de maneira ativa, criando novas soluções e sabendo que podemos muito mais.


Segundo: as práticas propriamente escolares - as dinâmicas de sala de aula - estiveram sob os holofotes. Se de um lado esta exposição foi incômoda e gerou um sem número de situações em que famílias e professores tiveram de redefinir seus papéis diante da realidade do ensino remoto, de outro, os professores conseguiram se apropriar do lugar de destaque que lhes cabe nessas dinâmicas. Sabemos que o coração de uma escola está nos fazeres conjuntos de professores e estudantes, algo que há tempos parecia esquecido, como se os professores estivessem destituídos do saber que eles mesmos criam e operam todos os dias. Foi, portanto, o ano de uma valorização fundamental dos profissionais do chão da escola.


Terceiro: O ensino remoto jogou luz em muitos dos abismos sócio culturais pré existentes e relativamente naturalizados por nossa sociedade. Os contextos discrepantes das escolas públicas e das privadas; do que seriam as tarefas da escola e das famílias frente às responsabilidades junto aos estudantes/filhos e, ainda, a implicação do próprio estudante em seu processo de aprendizagem. Dessa perspectiva, 2020 foi só o começo de uma era de mudanças urgentes e necessárias no campo da educação, de modo que 2021 promete ser pura continuidade.


Quarto: a escola é uma instituição criada com a Modernidade, de forma que sua existência vitalícia não está garantida de antemão. Como toda criação humana, a escola, do modo como a conhecemos, pode deixar de existir. É preciso, portanto, que nos impliquemos no projeto de sociedade que desejamos construir no futuro de curto e médio prazo, com especial clareza ao lugar destinado à educação escolar neste exercício de projeção.


Algumas perguntas norteadores são cruciais:

Valorizamos a escola e apostamos na educação escolar? De que escolarização estamos falando? De que modo as práticas escolares se comprometem com a formação de pessoas de fato autônomas? E como se relacionam com o entorno mais amplo? Que ações empreenderemos no sentido de minimizar o abismo entre os projetos de uma educação pública e de outra, privada?


São questões às quais não basta responder com palavras, mas sobretudo com ações.


2020 foi um ano importante e revelador e a perspectiva de que, com a virada do ano, tudo passe ou volte ao “normal” - mesmo que haja a vacinação massiva - soa como um desejo infantil e até mesmo imprudente.


Como diz o poeta, nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia. A maioridade bateu à nossa porta e é importante que não nos furtemos à tarefa de tomar 2020 como um ano de necessários inícios e repactuações, tal como anunciava o despretensioso filme da década de 1980.




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