Existe vida inteligente para além das identidades?
- Marta Picchioni

- 12 de mar. de 2024
- 2 min de leitura
Cena 1: o professor de literatura negro, Thelonious Ellison, é interrompido por uma aluna branca que se sente incomodada com o uso da palavra nigger, grafada na lousa pelo próprio. Este logo contra-argumenta: trata-se do uso de uma palavra em contexto - mais precisamente, o literário - portanto o incômodo devia ser superado. Insatisfeita com o posicionamento adotado, a aluna se retira da cena e logo vemos Thelonious numa espécie de reunião de departamento, onde é incentivado pelos chefes a tirar uma licença.
Há incômodos por todos os lados. Tendo como pano de fundo o contexto da produção literária, pode um negro falar sobre algo que não seja a negritude? Ou uma mulher escrever sobre outro assunto que não o feminismo? Colocado de outra maneira, haveria relevância possível para além de uma produção afinada às questões identitárias de raça e gênero?
É sustentando tal tensionamento que Ficção Americana, filme dirigido por Cord Jefferson, toca certeiro nas temáticas nevrálgicas da atualidade, abordando desde a tirania das palavras proibidas até a cuidadosa construção de como seria, na literatura e na vida, a imagem fictícia do “homem negro médio qualquer”.
Eis a crítica sustentada também pelo protagonista do filme, o escritor erudito e negro que defende o direito de não enquadrar sua literatura em nenhum tipo de agenda prévia. Eis também o motivo de sua antipatia por Sintara Golden, a mais nova best seller e autora de um livro que versa, justamente, sobre a negritude, e ao qual Theolonious, agora respondendo pelo apelido de Monk, não se deu ao trabalho de ler.
Junto à vontade de afrontar o que considera mediocridade editorial, orientada mais pela demanda de um mercado afoito por estereótipos de gênero - no caso, o literário - do que pela qualidade das obras, Monk cria para si um pseudônimo cuja escrita tem por objetivo atender a todos os clichês do momento, ao ponto de assemelhar-se a uma piada de mau gosto. O cômico da situação é que o livro acaba por cair nas graças dos editores e o sucesso chega como avalanche.
Entre a crítica contundente e a retomada das raízes perdidas, junto à mãe doente, o irmão gay e a irmã que arcou com os cuidados e as finanças da família, Monk passa de escritor desconhecido à celebridade instantânea, precisando dar conta do dilema de revelar ou não sua identidade secreta.
Afinal, de um jeito ou de outro, recaímos outra vez na noção de identidade, seja para afirmá-la dentro de um grupo minoritário, seja para colher os louros do sucesso a partir de um lugar subjetivo bem demarcado, com nome, sobrenome, endereço, estado civil e profissão.
Mais que respostas fáceis para uma temática complexa, Ficção Americana tece e sustenta um panorama que entrelaça vida e obra, numa dupla acepção para o aspecto ficcional da construção identitária. Vale cada segundo desta provocação necessária!







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