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O que desta zona tanto nos interessa?

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 2 de abr. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 3 de abr. de 2024

Tanto foi dito e de tantas maneiras sobre o holocausto que pode causar surpresa o fato de ainda haver tanto por dizer e de maneiras ainda inéditas sobre ele. É assim que funciona quando estamos diante de um acontecimento: nossa capacidade de dizê-lo é sempre circunscrita e parcial em relação a tudo aquilo que permanece inaudito.



Por seu caráter extemporâneo, tal acontecimento fala para além de seu tempo histórico, de modo que trata das forças que ainda recaem e se efetuam sobre as formações subjetivas da atualidade.


Desta zona, que ainda nos interessa, há a casa de campo e o campo de concentração. Entre eles, véus de todo tipo: cortinas, muros e cercas elétricas. Ambos os campos, o da casa e do extermínio, compartilham de um solo comum: o campo de forças que pavimenta a engrenagem que serve de base para a maquinaria social de seu tempo. É deste campo, o do solo comum, que vamos aos poucos tendo notícias. 


Do lado da casa, desabrocha a vida de uma família funcional, que se serve de uma natureza campestre para passar seus dias e se divertir. É nesta mesma casa que homens se reúnem para otimizar a funcionalidade do maquinário estatal, que deve conquistar a maior agilidade possível para que os campos da casa e o de extermínio não venham a se misturar.

  

Como em todo acontecimento, porém, sabemos que sempre há um resto, um vestígio inseparável, incapturável e imperceptível que transita de um lado a outro, ainda que os moradores da casa insistam em dele, nada saber.

Como as ervas daninhas que não param de crescer, sob o solo não autorizado da casa de campo, tal resto também insiste em se fazer presença. É ele que perfura os muros ou chega pelo ar, restos de corpos mortos invadindo corpos que ainda vivem, seja pelo contato com as águas do rio, ou pelo cheiro da fumaça; seja pelos gritos que alcançam os ouvidos mais desatentos - mesmo quando a algazarra das brincadeiras parece encobri-los - seja pela imagem das chaminés que nunca param de funcionar.


Ainda que façam de tudo para se comportar como os famosos macaquinhos que tapam ouvidos, olhos e bocas num esforço coletivo para nada saber, as notícias do que ali se passa, os alcança. Trata-se do puro acontecimento em seu viés real e integral - e diante do qual a completa alienação revela-se um desejo impossível. 


É diante das notícias que chegam - da porção do real que não se quer saber - que os diversos personagens serão convocados a tomar posição.  Haverá quem permaneça na condição de desfrute, habitando o campo da casa como se não houvesse amanhã, e haverá quem, diante do que se apresenta aos olhos, parta em silêncio no escuro da noite.


Há quem se ocupe de retirar as roupas do varal, diante da perspectiva de vê-las marcadas pela fuligem cinzenta dos corpos queimados, e há quem opte por perfurar cada um desses véus para polinizar outros mundos possíveis, mesmo que a partir das poucas e estreitas frestas disponíveis.


Enquanto uns se valem da noite para cerrar portas e apagar luzes, emerge a figura enigmática de uma menina que se aproxima da extensa zona entre campos para deixar por ali uma porção de intrusas e suculentas maçãs. Enquanto somos embalados pela clássica história de João e Maria, a menina opera um enredo às avessas, onde o que interessa já não é capturar bruxas nem voltar para a casa, mas povoar a zona entre campos com alguma semente de cor e alegria, o sabor esquecido de uma maçã, ainda que no dia seguinte ela custe a vida de alguém a quem já não se permite viver.


Eis o que ainda nos interessa nessa zona: a possibilidade de mostrar nas entrelinhas como funcionam os bastidores de uma operação que só se sustenta diante de nossas cumplicidades. A alienação que nos faz permanecer na confortável posição de nada saber sobre aquilo que, de todo modo, já sabemos e inclusive praticamos, mas sobre o qual nada se pode dizer.  


Por fim, o museu. Parece ser esta a maneira que encontramos para contar e mostrar uma história da qual não se quis saber nem dizer e, por isso, se apresenta como enunciação sempre inédita, uma zona de permanente interesse.  


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© 2022 Marta Picchioni

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