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A Cidade das Crianças é uma cidade larga!

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 2 de set. de 2021
  • 4 min de leitura

Deve ter alamedas verdes

A cidade dos meus amores

E, quem dera, os moradores

E o prefeito e os varredores

E os pintores e os vendedores

Fossem somente crianças



Os Saltimbancos


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Dos Saltimbancos a Chico Science & Nação Zumbi, muita gente se dedicou a cantar e poetizar a vida nas cidades. Sua deselegância nada discreta, o cotidiano em apartamentos e o mundo passando em alta velocidade, do outro lado da janela. A cidade é também território de contrastes sociais a cada esquina e palco de um crescimento desordenado que nos leva às alturas ao mesmo tempo em que nos subtrai o chão.

Os Saltimbancos nos cantam uma cidade sob muitas perspectivas e de onde falam muitas vozes: o gato, o cachorro, a galinha, o jumento, cada um a imaginar um lugar que atenda a seus desejos e necessidades e, por fim, seria ótimo se seus moradores fossem somente crianças...


A cidade que temos, no entanto, é uma cidade de adultos e feita por eles. Sua engrenagem é resultado de um projeto de urbanização que, aqui, se inicia no século 20, junto ao processo de industrialização e à promessa de crescimento econômico, dos quais funciona como espelho e chamariz. Nesta cidade, nem todos são contemplados - nem mesmo todos os adultos - e as crianças e os animais são habitantes periféricos, assim como as plantas, que têm seu lugar usurpado para a construção de imponentes arranha-céus.


Mas, é bom lembrar, nem sempre foi assim. Antes do asfaltamento das ruas e da sua ocupação por carros, motos e muita fumaça, as ruas eram lugar de passagem, mas também de convívio, uma espécie de quintal, com janelas e portas sempre abertas e onde a vizinhança se encontrava para conversar e as crianças podiam brincar. Não havia adultos cuja função exclusiva fosse monitorar a criançada ou entretê-las com atividades recreativas, já que o próprio espaço era rico em possibilidades de invenção e exploração.


Neste tempo, brincar fora de casa, não significava estar abandonado. Ao contrário, havia uma comunidade com a qual se podia contar e da qual as próprias crianças eram parte, tanto na hora de brincar como na de ajudar no que fosse preciso.


Em pleno século 21, a transformação das cidades em grandes centros urbanos é uma realidade e, no entanto, lamentar o tempo perdido, adotando uma postura passadista não parece a melhor opção quando há tanto por ser feito.


Como reabilitar o chão das grandes cidades? Como trazer ao espaço comum, o convívio que antes acontecia nas ruas? Como instaurar um lugar de brincadeira não mediado pelo fazer dos adultos? E, por fim, como inventar novos futuros para as cidades que tenham como parâmetro o convívio entre as pessoas? Essas são algumas questões que inquietam e inspiram pensadores do mundo todo, mas aqui há uma virada importante: já não se trata da proposição de uma cidade pensada pelos e para os adultos, mas de chamar as crianças, essas grandes pensadoras, a este debate fundamental.

Foi pautado por essas ideias que Francesco Tonucci, pensador italiano, desenvolveu na década de 1990, o conceito de Cidade das Crianças, uma cidade pautada pelos princípios da escuta aos mais novos e que, à moda do que já cantavam os Saltimbancos, ao levar em conta as necessidades das crianças, tornaria as cidades lugares muito mais interessantes.


Tal conceito tem aplicação direta na prática: as crianças participam das discussões sobre o plano diretor das cidades ajudando os adultos a pensá-las como um espaço comum, com foco na possibilidade de circulação segura de pessoas de todos os tipos e privilegiando a cultura dos encontros, ao invés do investimento na cultura do medo, como acontece hoje em dia.


Na proposta de Tonucci, uma relação amistosa com o espaço comum das cidades, nos convoca agir em três frentes: a primeira delas é priorizar as crianças ao invés dos adultos, o que incentivaria a construção de mais espaços de convívio e brincadeira do que de trânsito de automóveis, o que desemboca na segunda ação: priorizar os pedestres e não mais os carros, o que implicaria redesenhar as ruas em sua relação com as calçadas, mais largas e bem pavimentadas do que são hoje. Nesta mesma direção, a terceira ação prioriza os bairros ao invés das cidades, tornando possível a locomoção em distâncias menores e do modo mais autônomo possível.


Aqui é preciso tomar a escuta dos mais novos como um dispositivo que de fato se proponha a trazer para as cidades propostas e espaços que promovam maior autonomia e liberdade para as pessoas em geral, ao invés do crescente investimento em dispositivos de controle e vigilância - ainda que sob o manto da proteção.


Cabe ainda uma ressalva em relação ao termo escuta, que não se refere estritamente àquilo que é dito por meio de palavras, mas ao que as crianças conseguem expressar por meio das múltiplas linguagens que lhes são disponíveis: seus gestos, seus corpos, desenhos, brincares, interesses.


Não se trata, portanto, de conceber, verticalmente, uma cidade para as crianças, mas de levar a cabo a ideia transversal de pensar com elas em Cidade das Crianças. Tal dispositivo, no fim das contas, tem o compromisso de dar passagem aos desejos de muitos corpos, tornando a vida em comum mais fluida, amigável e inclusiva.


Outra vez, é uma aposta no convívio, no lugar da brincadeira e dos jogos, capaz de reconhecer o outro como alteridade amistosa e a quem não é preciso evitar. Enfim, uma comunidade que, desde cedo, aprendemos a sustentar.


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© 2022 Marta Picchioni

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