A cidade faz aniversário -e nos convoca a reinventá-la
- Marta Picchioni

- 27 de jan. de 2022
- 3 min de leitura
No centro de Fedora, metrópole de pedra cinzenta, há um palácio de metal com uma esfera de vidro em cada cômodo. Dentro de cada esfera, vê-se uma cidade azul que é o modelo de outra Fedora. São as formas que a cidade teria podido tomar se, por uma razão ou outra, não tivesse se tornado o que é atualmente.
Ítalo Calvino - As cidades invisíveis

imagem: Jazzbery Blue
Faz um tempo, li uma notícia intrigante. Um mergulhador deparou-se com um filhote de polvo que adotou um copo plástico como local de abrigo, ao invés das conchas, como até ali era o mais comum entre sua espécie.
Pall Sigurdsson, o mergulhador, dedicou-se então a ensinar o pequeno polvo a usar uma concha ou outros elementos da natureza nativa, mais eficientes na proteção contra os predadores, ao invés do maleável copo plástico, elemento que, tempos atrás, era totalmente estranho àquele habitat, mas que agora também passava a compô-lo.
Esta semana, nossa Fedora fez 468 anos e a lembrança da notícia do polvo me veio à tona, como uma dessas manobras do inconsciente que, a princípio, fazem pouco sentido, mas que se insistirmos um pouco em sua linha enunciativa, nos possibilita chegar a uma síntese que uniria tantos vetores desconexos - afinal, não é todo dia que paramos para pensar o quanto como nossos modos de vida produzem efeitos em nossas subjetividades.
Tal qual o povo, que hoje adota um copo plástico como abrigo, nós também construímos nossas pequenas bolhas, Fedoras miniaturizadas que, ao se reproduzirem em cada morada, impedem que criemos outras modalidades de vir a ser.
Do alto de nossos caixotes verticalizados, ao qual chegamos transportados por outros caixotes, dessa vez metálicos e móveis, abrem-se mais outros tantos, portas, links e janelas teladas, que delimitam ao olhar um certo enquadramento da vida.
Como o oceano que precisa se adaptar aos resíduos de nossa passagem por aqui, nós também aprendemos a viver em cidades, já que nem sempre esta foi a maneira majoritária de organização social, que surgiu há cerca de 5 mil anos, junto aos processos de demarcação e posse territorial, organização familiar e domesticação da natureza.
Tornamo-nos seres prósperos e sedentários, mais dispostos à reprodução de nossas Fedoras bem arquitetadas que aos devires nômades e intempestivos que, em todo caso, seguem à espreita.
A grande sacada, no entanto, talvez seja assumir que não só nós vivemos em Fedora, como, o mais fundamental, ela vive em nós! Fedoras interiorizadas com todas as suas repartições, autorizando olhares e legitimando práticas, instaurando em cada um de nós a lógica do medo que deve ser administrada por um sujeito racional e bem organizado.
Ao que tudo indica, os altos muros nos protegeriam de todo perigo que vem de fora, mas não… Fedora e seus medos já nos habitam, agora, vivem dentro de nós.
Quanto mais a população se multiplica, mais nossa Fedora se expande e se afirma em múltiplas unidades de si mesma. Cidades, metrópoles, megalópoles: a maquinaria urbana não para de funcionar e de ditar nossos ritmos, enquanto nos apequenamos, resignados ou desejosos, diante de seus arranha-céus.
Talvez tenhamos nos tornado polvos que vivem em copos plásticos, julgando estar a salvo de nossos predadores, até nos darmos conta que a ameaça está nos modos aprisionantes que criamos para nós mesmos.
Outra vez, o aniversário de Fedora faz pensar que ela sempre pode ser outra - está viva, afinal! - dando margem às forças invisíveis - maurílias, eufêmias, zobeides, zemrudes e outras que anunciam junto ao vento, ao fluxo das águas e à copa das árvores sua potência de acontecer e se efetuar em novos caminhos.






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