A escola acha que a gente é burro!
- Marta Picchioni
- 4 de mar. de 2021
- 5 min de leitura
Atualizado: 18 de mar. de 2021
Almoço de domingo, crianças em casa. Lá pelas tantas, um dos meninos, com jeitão mais calado e observador, aproxima-se dos adultos que conversavam sobre escola e solta a pérola que dá título a este texto. No mínimo, ficamos todos curiosos: por que será que na visão daquele menino inteligente, a escola os achava burros?

Ele explicou: certa vez, teriam uma atividade muito legal. Era uma espécie de estudo do meio em que viveriam uma situação de “sobrevivência” e teriam de desempenhar três tarefas: construir uma barraca, acender uma fogueira e cozinhar. A garotada estava eufórica e muito engajada com o que estava prestes a acontecer: finalmente um desafio à sua altura!
Porém, na hora de montar as barracas, ao invés de deixarem as crianças tentarem, todos os adultos vieram ajudar. Mais tarde, quando os estudantes juntaram muitas folhas secas e galhos e a fogueira estava pronta para ser acesa, novamente os adultos tomaram a dianteira e os afastaram, deixando o gran finale sob sua responsabilidade, já que não queriam correr o risco de alguém se queimar.
Eis o motivo pelo qual o menino se mostrava frustrado com a escola: sentiu-se enganado diante da proposta “fake” de viver uma aventura de sobrevivência, afinal tudo o que fizeram foi juntar folhas e gravetos espalhados pelo chão. Sentiu como se a escola esperasse bem menos do que aqueles estudantes podiam, queriam e tinham para dar.
Ao tomar esta situação singular como ponto de análise, este menino nos presenteia com um exemplo bem ilustrativo do muito que hoje se faz nas escolas. Dizemos que a aprendizagem deve estar no centro dos fazeres escolares - e não mais o ensino -, dizemos que é fundamental aprender por meio de situações problemas que envolvam desafios reais e que engajem os estudantes mas, e na prática, somos capazes de sustentar as condições necessárias a esta virada conceitual?
De acordo com este aluno, a resposta é claramente não. Segundo ele, estamos muitos passos atrás daquilo que gostaríamos. Até sabemos como engajar os estudantes e propor atividades realmente instigantes, mas, na hora H, como se fossemos levados por uma força maior, nos antecipamos às suas tentativas e vamos logo para os finalmentes: a cereja do bolo.
Sustentar a ideia de que o estudante esteja no centro do processo de aprendizagem leva mais tempo e não necessariamente garante que todos chegarão a resultados satisfatórios, o que, com os adultos à frente do processo, foi conseguido de modo pleno: barracas montadas e fogueira acesa, tudo dentro do previsto.
E se tivéssemos deixado que montassem suas barracas sozinhos e no devido tempo, para que a ajuda fosse solicitada, apenas em caso de necessidade? E se os tivéssemos deixado empreender algumas estratégias para acender a fogueira, como esfregar gravetos ou riscar fósforos, que certamente estavam à mão, teriam se sentido de fato mais considerados, naquela que seria uma atividade de sobrevivência?
A metáfora não poderia ser melhor: ao se anteciparem às dificuldades que eventualmente o grupo de estudantes teria e já apresentando soluções que tinham como foco os bons resultados, o que os adultos dizem é que nenhum deles seria capaz de sobreviver ao desafio proposto pela própria escola. Daí a legitimidade da sensação exposta pelo menino, ao dizer com todas as letras que “a escola acha que somos burros”.
Isso significa que a escola age como se os estudantes fossem menos capazes do que de fato são, como se pudessem menos do que de fato podem. E como comunicam isso a seus estudantes? Simplesmente se antecipando aos desafios que ela própria apresenta.
Diante do desafio real a ser vivido em um teste de sobrevivência, o que a escola poderia ter feito para permitir que os estudantes tentassem, por mais tempo e de maneira autônoma, enfrentar as atividades propostas?
Talvez, pudessem ter conversado sobre estratégias para acender fogueiras. Talvez, perguntado sobre quem cozinha em casa e qual a diferença entre acender um fogão e uma fogueira. Treinado modos de acender fogueiras, antes da situação em si mesma. Em suma, entre o adulto que faz pela criança e aquele que se coloca como um apoio - tendo em vista, inclusive, a questão da segurança - há inúmeras gradações possíveis e é sobre isso que é preciso nos debruçar.
Um modelo de ensino que tem como centro a aprendizagem, requer que a ação de cada estudante sobre o mundo seja o ponto de partida na construção de conhecimento. É preciso, portanto, permitir que esta ação aconteça, o que requer a retirada de boa dose de controle por parte dos adultos que, de fato, não estarão mais no centro do processo, mas nas beiradas, como condutores e mentores das ações empreendidas.
Sustentar essa mudança não é fácil e o menino percebe. A escola tem o desejo, a vontade de deixá-los tentar, mas não chega a sustentar as devidas condições para ultrapassar sua própria retórica. O gosto que fica é o da expectativa frustrada, aquele que reafirma que não há nada de tão diferente assim no que parecia ser uma proposta tão inovadora, mas que, ao final, revela-se apenas mais do mesmo, uma pequena mudança, mais de aparência do que nos modos de fazer.
O argumento da segurança é imbatível, diriam alguns. O que fazer se uma dessas crianças se queimasse em uma atividade conduzida pela escola?
De fato. Vivemos um tempo de judicialização das relações que poderia acarretar contratempos legais numa situação imprevista decorrente desse tipo de atividade. Ou não. Tudo depende do entendimento do que está em jogo e, é claro, de uma execução bem planejada. Um dos riscos de mexer com fogo está justamente na possibilidade de se queimar - e isto está implícito no pacote das tentativas - como também o investimento no planejamento e organização da atividade, de modo a minimizá-lo. Faz parte do jogo da vida e das aprendizagens, no entanto, correr certos riscos. O risco de não dar certo é um deles, o de cair, ralar o joelho e se levantar é outro.
Vivemos, no entanto, uma época avessa aos tombos. Desde os conflitos entre pares até os pequenos insucessos ou dificuldades de percurso: a saída imediata é recorrer a mediação dos adultos, sejam eles os pais, os professores, os psicólogos ou a imensa variedade de profissionais que nasce em torno da ideia de que uma trajetória de vida deve ser bem sucedida desde o início.
Aqui, de novo, a percepção do menino é certeira. Não só a escola espera menos do que crianças acham que podem dar, como a sociedade em geral opera desta mesma maneira. Crianças superconduzidas é o que temos produzido, de modo que somos nós mesmos, os adultos, que não permitimos que tentem, de verdade, passar pelos testes de sobrevivência inerentes à própria vida.
Se pensarmos em nosso contexto urbano, seria pouco provável que precisassem montar barracas e acender fogueiras, mas, então, seria importante pensarmos em quais tarefas reais, e necessárias à sobrevivência de nossos tempos, deixamos, de fato, sob sua responsabilidade.
Sabem acender um fogão? Fritar um ovo? Sabem fazer arroz? Arrumam seu quarto? Cuidam de seus bichos de estimação? Lavam a louça? Tomam banho sozinhas? Fazem sozinhas suas lições? Arrumam suas mochilas? Eis aí algumas perguntas para nós mesmos, adultos, na medida em que ouvimos de um menino que a escola - e a sociedade, por extensão - espera e oferece a eles menos desafios e mais ajudas do que seria o necessário.
O que o menino nos diz é que estamos errando na medida. É preciso, portanto, escutá-lo e aprender com as próprias crianças a não tratá-las ao modo café com leite. Elas podem mais.
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