A força de um choro de criança
- Marta Picchioni
- 23 de ago. de 2022
- 2 min de leitura
Tudo corre tranquilo, solo estável, cada pingo descansa sobre seu “i”. Eis que se ouve ao longe um choro de criança, um choro que começa manso e aos poucos se intensifica, demandando toda sua urgência pré-significante.

imagem: Carlos Quiterio
Não há nome para aquilo que chora, apenas o som incessante, manifestação da força de uma existência no aqui e agora. O choro, a princípio, não quer dizer dizer nada e não se dobra às nossas tentativas de tradução, ele apenas é.
Ao estremecer a estabilidade de nossas nomeações, o choro atua como água em pedra, limando e instaurando fissuras onde antes tudo que havia era chão firme sob os pés.
Diante de um choro de criança, partimos em busca de um nome, uma razão que se passe por trás e que explique a força dessa potência vocal, que seja capaz de apaziguar o desconforto e reestabelecer a segurança do solo, do colo, outra vez. Então, tudo se aquieta: o puro choro, como manifestação da existência de um corpo, nos desterritorializa.
O corpo produz som e este também cria corpo, que se expande para fora da pequena boca e ressoa em ondas por todo o campo de forças. Suas linhas sonoras ganham materialidade ao modo de um ritornelo, alternando entre repetição e diferença. É quando o choro ganha novos timbres até tornar-se uma quase experimentação musical, e podemos brincar de chorar.
O choro que corta e atravessa todo campo Significante, coloca na berlinda as relações de saber e de poder. Assim, seu ressoar intensivo nos derruba por baixo e pelas bordas, implodindo as estruturas e as palavras de ordem. O que podemos diante de um choro?
Nenhuma receita será capaz de dar conta da potência de existir de um corpo que chora e, ao chorar, varre para longe, tal qual vassoura de bruxa, territórios erigidos a duras penas. Diante de um choro de criança caem todos os cânones e cada um de nossos absolutos.
Cada choro é único e sua potência vocal pré-significante atua como o martelo de Nietzsche rachando o mundo e criando suspensões: frestas de onde novos sentidos podem nascer.
Um choro de criança não se apazigua nem se domestica. O que ele pede é entrega, encontro de corpos e de suores. Para dar conta de um choro de criança, é necessário dar férias à racionalidade, acionando nossos devires animais. Rugir, cheirar, calar, ninar. Fazer-se presença deixando-se perder nos labirintos dos sentidos, para além do escudo da linguagem.
Diante da força de um choro de criança é preciso devir animal e perder-se em seu ritornelo, criando com ele uma melodia conjunta, capaz de imprimir um arranjo inédito ao já estabelecido.
Um choro de criança, tal qual rugido de leão, põe o mundo abaixo e nos abre fissuras a partir das quais outras linhas se anunciam. Diante dessa força, nenhuma retórica terá efeito, pois aqui já não vale a razão de quem tem razão, apenas o som que suspende o mundo e pede de nós criação.
Comments