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Afinal, o que é educar para a potência?

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 14 de jan. de 2021
  • 5 min de leitura

Atualizado: 15 de mar. de 2021

Vira e mexe, somos invadidos por novas palavras de ordem no campo da educação e quando menos percebemos elas estão ali, circulando confortáveis, de boca em boca, ouvido em ouvido, como se fossem velhas conhecidas, embora não saibamos muito bem qual sua procedência ou desde quando se tornaram tão íntimas.








Os usos que fazemos da linguagem são um importante agenciamento de poder. Logo, o modo como empregamos as palavras, repetindo-as em contextos diversos, nunca é neutro. Cumpre-nos, então, empreender a importante tarefa de investigar com maior profundidade de onde surgem certos termos que passam a habitar nosso vocabulário, para que não caiamos na armadilha de praticar um uso esvaziado dos mesmos.


A palavra potência, por exemplo, tem sido utilizada em diversos contextos para se referir a um tipo de educação e a um certo tipo de sujeito que, em tese, seriam diferenciados. Uma aula potente, para um estudante potente, planejada por uma equipe potente, em nome de uma educação também potente. Aqui, o termo aparece como um modo de qualificar o sujeito que aprende, aquele que ensina e, também, certas práticas educativas.


Um dos efeitos do uso generalizado de uma palavra é que ela corre o risco de se deslocar de seu contexto inicial, assumindo significados diversos daqueles para os quais foi concebida. Este pode não ser exatamente um problema - posto que a língua é viva e está em constante processo de construção - mas é importante que tenhamos ciência desse movimento, até para que possamos nos situar.


A palavra potência surge, inicialmente, no campo da física para se referir à taxa de variação de energia utilizada durante certo intervalo de tempo, indicando que a energia potencial é uma propriedade da matéria que só se ativa a partir do momento que um corpo entra em movimento.


Aristóteles, filósofo grego nascido em 384 a.C., se aprofunda nesta ideia, até porque, na antiguidade, a construção dos grandes sistemas de pensamento partia da necessidade de compreender os eventos observáveis da natureza, por meio dos saberes integrados da física, da matemática e das ciências em geral.


Assim, é com ele que a ideia de potência aparece como aquilo que sustenta todo tipo de existência, desde que associada a presença de um ato que aciona a energia potencial a partir do movimento. É, portanto, da união entre potência e ato que se torna possível o processo de transformação e atualização daquilo que existe em germe.


Muito mais tarde, no século 17, o filósofo Baruch Espinosa dará continuidade a essa ideia. Para Espinosa, tudo o que existe também se sustenta por um grau de potência que é, justamente, a capacidade de agir no mundo e se diferenciar, aumentando assim a capacidade de afetar e de ser afetado por aquilo que nos acontece.


Logo, para que uma potência se efetue, é preciso que haja ação, a partir da qual se dará um processo de transformação que não tem um fim determinado ou pré estabelecido, mas que é a pura condição de continuidade da vida.


O que pode uma vida? Até onde ela pode? Qual a sua potencialidade máxima?


Não temos como saber, senão tornando possível um largo campo de experimentação a partir do qual possamos entrar em relação e nos compor de múltiplas maneiras com os diversos elementos disponíveis. Será a partir desse campo de experimentação e sempre pautados pela ação e pelo movimento, que as potencialidades de tudo o que existe poderão se efetuar, num movimento que abre espaço a múltiplos e imprevisíveis desdobramentos e, assim, sucessivamente e de forma infinita.


Deste modo, nada está dado de antemão. Não se pode precipitar uma potencialidade - um vir a ser - se não houver encontro com um campo de experimentação.


Quais os efeitos quando a educação se apropria da ideia de potência para designar atores e práticas desenvolvidas no seu campo de atuação?


Em primeiro lugar é preciso recuperar o sentido do conceito em toda sua magnitude, para que sua força não se perca quando utilizada para qualificar algo ou alguém. Ao transpor termos entre um e outro contextos é preciso compreendê-los em sua radicalidade, para não correr o risco de transformá-los em apenas mais uma palavra de ordem para fins mercadológicos.

Não se trata de utilizar o termo para qualificar sujeitos ou práticas, mas para ativá-lo em essência, possibilitando que aconteça em um permanente ciclo de experimentação, ação e efetuação. Tal ideia, portanto, quando bem apropriada pelo campo da educação, traz profundas implicações que vão muito além de seu uso semântico.


Na prática, não se pode antever o que pode um estudante sem que existam condições para que ele desenvolva seu máximo potencial. Derivam desse pressuposto as metodologias ativas e as práticas que tem como foco a ação dos estudantes em seu próprio processo de aprendizagem, pois para chegarmos ao nosso grau máximo, estar em movimento permanente é condição imprescindível.


Dito isto, uma educação orientada à potência não é aquela que qualifica os sujeitos como potentes ou impotentes, já que a potência não se refere a um atributo de posse. Ao contrário, ela torna-se tanto maior quanto mais for acionada.


Uma educação para a potência, nesses termos, está a serviço de uma permanente transformação dos modos de afetar e ser afetada por seus agentes. Ela só existe em constante processo de deslocamento e desterritorialização de si mesma.


Uma educação para a potência, investe na criação de linhas de passagem e não de formas fixas. As linhas podem se compor de múltiplas maneiras, pois são móveis e se relacionam de acordo com as necessidades e as variações intensivas do presente, em um tempo que se mede por velocidades e lentidões - ou pelas necessidades inerentes ao próprio processo.


Uma educação para a potência não se contenta em estabelecer um fim claro e determinado ao processo porque não somos capazes de prever até onde se pode chegar e nem quanto tempo levaremos até lá. Podemos sim, fazer escolhas, querer parar em determinado ponto, desde que assumamos que se trata de fazer um corte intencional.


Sobretudo, uma educação para a potência investe em novos regimes de corpo, de linguagem e de pensamento, não mais orientados à uma lógica da moral, comprometida com o dever ser, mas atravessados por uma ética, comprometida com o vir a ser ou com o devir. A diferença aqui é fundamental: uma educação para a potência parte daquilo que nos mobiliza e se arrisca em direção ao desconhecido, criando novos caminhos e novos modos de fazer.


Dito isso, não há dúvidas que necessitamos investir neste modo de educar. A questão que se coloca é de outra ordem e diz respeito ao quanto estamos dispostos a levar a cabo esta empreitada em toda sua radicalidade, o que significa que, ao invés de nos contentar em pregar este tipo de educação, teremos de arregaçar as mangas e praticá-la, em ato.


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