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Alçar voo, deslocar-se pelo mundo: a história de um menino que aprendeu a voar

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 19 de ago. de 2021
  • 3 min de leitura


Nunca se pode concordar em rastejar, quando se sente o ímpeto de voar.

Helen Keller



Era uma vez um menino, morador de uma grande, populosa e barulhenta cidade. Esta imprime o ritmo de seus dias, de manhã até à noite, o tempo preenchido por muitas atividades. Mas não daquelas que inspiram e enchem o coração do menino, senão as que se apresentam como demandas sequenciais, fazendo dos dias uma constante repetição de si mesmos.



imagem: Andrea Brazil


Além da cidade, a casa e a escola. Morar em edifícios, ter pouco tempo ao ar livre, viver sob luzes artificiais. Assim, menino cresce e se desloca por meio dos dispositivos urbanos: o elevador, o carro, os eletrônicos, o tic tac do relógio que regula seus fazeres e os movimentos do corpo - e sobe e desce.


Boa parte da vida se passa durante as aulas - dadas na escola e fora dela -, constantes mediações que invadem a relação do menino com seu tempo próprio.


É só quando cai a noite - e com ela a pausa e o silenciamento - que se abre a possibilidade de olhar a vida sob novas perspectivas. O menino ativa outros modos de estar no mundo e lança-se curioso à vida que acontece ao redor.


Se a cidade nunca dorme - já que suas engrenagens jamais deixam de funcionar - ela ao menos dá uma trégua para que outros seres, aqueles que não vemos durante o dia, emerjam de suas tocas para nos oferecer companhia. É durante as noites e longe dos controles cotidianos que o menino torna-se capaz de ver as estrelas e alçar voos.

Será na companhia de um grande pássaro negro, que o menino aprenderá a voar - e a correr os riscos que a vida sob permanente tutela não permitia. Aos poucos, ele se apropria de seu tempo e já não pode se formatar aos modelos instituídos, que forjavam seu corpo e almejavam seu desejo, em vias de ser capturado.


Eis uma trama das mais humanas e comuns nos dias de hoje: a reprodução automatizada daquilo que está posto e que, no entanto, pode ser interrompida por meio de negativas e pela produção de hiatos. Voar, brincar, dançar, nadar, criar. O fundamental é manter-se em movimento para conquistar um espaço que dê sustentação ao processo de criação de si.


Poderíamos fazer uso dessa narrativa para pensar, repensar e experimentar outros tipos de relação com a cidade e com as micropolíticas da vida, que se entregam, encaixotadas, ao que se supõe que dela se espera. É nesta direção que o menino constrói seu duplo: um espantalho moldado à imagem e semelhança do olhar adulto, e que aceita de bom grado o papel que lhe atribuem - ao passo que o menino já está longe: autorizou-se a levantar voo e a habitar outros lugares.


Deslocar-se pelo mundo implica em correr riscos, experimentar ventos e tempestades, alturas e escuridões: nossos medos ancestrais, dos quais somos levados a nos proteger, mas que mostram seu efeito potencializador sobre o menino: a cada dia mais forte e mais próximo de tornar-se o que sempre foi: um menino pássaro.


Por fim, trata-se de uma narrativa para repensarmos os modos como praticamos a educação dos mais novos, imprimindo-lhes um ritmo e uma frequência, muito mais pautados por nossos medos do desconhecido - o futuro - do que pelo que pedem os movimentos intensivos que se desenrolam agora mesmo, no tempo presente de suas infâncias.


Tal composição entre os tempos, não se apresenta como uma oposição, já que as diferentes temporalidades se sobrepõem e convergem entre si. Talvez falemos da necessidade de cultivar uma escuta e de cavar espaço para aquilo que de novo precisa e deseja alçar voos próprios.


É como aquela velha história de que criamos filhos para o mundo, mas não o nosso mundo, senão sempre um outro, em vias de se refazer.


Que em nossa tarefa educativa não nos contentemos em criar espantalhos ou espelhos de nós mesmos, mas, quem sabe, ao nos fazermos plataformas de lançamento, os desejos que se anunciem possam, de fato, encontrar espaço de sustentação, ainda que sem garantia de chegada, mas com condições favoráveis para devir.



O menino pássaro - Editora Patuá

texto: Marta Picchioni

ilustrações: Andrea Brazil



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