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Aprendizagem como prática de si

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 19 de nov. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 15 de mar. de 2021

Foi na modernidade que confinamos os atos de aprendizagem às escolas. Passamos a considerar como condições ideais para aprender a imobilidade do corpo e a repetição dos ensinamentos proferidos por aqueles que os detinham, os “professadores”.




Não só confinamos o espaço e o tempo reservados ao aprender, como também os papéis desempenhados por cada um dos agentes dessa relação. Professores e alunos situados em polaridades opostas, não como caminhantes desse exercício conjunto.

Muitos desses modos de conceber o ensino e a aprendizagem são resquícios de nossa herança judaico-cristã, que sacralizou o saber dos textos e das palavras, distanciando-os das práticas de vida cotidiana.


O período conhecido como modernidade também deu continuidade a esta separação, tornando-a ainda mais marcada. Reforçou não apenas a cisão entre fazeres e saberes, como promoveu a fragmentação destes últimos, que passaram a ser alocados em disciplinas distintas.


Nem sempre foi assim. Antes do processo de escolarização, os saberes estavam em muitos lugares e geralmente associados a um ofício da vida prática. Produzir o pão, os objetos de uso cotidiano, cuidar de uma plantação, criar animais eram fazeres geradores de saberes, todos relacionados aos modos de vida.


Adentrando o século 21, é claro que não se trata da tentativa de reproduzir formas de vida de épocas passadas. No entanto, já não se pode ignorar que o modelo escolar, empreendido durante os últimos cinco séculos, tem dado sinais de sua insuficiência. Torna-se necessária a criação de outros caminhos, mais em acordo com aquilo que reconhecemos como as necessidades do presente.


Como você aprende? Já parou para pensar sobre isso? Pois não existe um único modo de aprender.


Para grande parte das pessoas, não basta escutar o que alguém diz. A construção de saberes passa por muitos outros lugares: nossos corpos, nossas motivações, interesses e também a necessidade de ação. É assim que voltamos a considerar, tanto as relações de aproximação entre ação e pensamento, como entre quem ensina e quem aprende. Aprender torna-se, neste contexto, a instauração de um exercício contínuo em determinada prática.


Mas o que exatamente isso significa?


Uma prática, seja ela qual for, requer persistência e continuidade, ação e movimento. Um pouco por dia, todos os dias. Fazer e refazer, exercitar.

Aprender a nadar, a escrever, a interpretar textos, a desenvolver bons argumentos, a cultivar um jardim, a cozinhar, a fazer contas. Nenhum desses saberes será conquistado de uma vez por todas. Não há grau máximo, o topo da montanha, mas sim, a prática, em toda sua repetição e diferença, seus graus de aprimoramento, seus andaimes, sempre levando em conta as variações de cada dia, dos humores, de nossas possibilidade de avançar.

Procurando referências na literatura, encontramos que aqueles que foram considerados grandes sábios, dedicavam seu tempo a pensar questões fundamentais da vida sempre em consonância com a natureza e seu entorno, sempre atentos às sutilezas que eclodiam a todo momento em sua volta.


Os gregos antigos, por exemplo, construíram seus sistemas de pensamento enquanto se relacionavam com a vida na polis, ou seja, havia uma consonância com as prática da vida comum. Os discípulos de Aristóteles eram conhecidos por peripatéticos, em razão de caminharem ao ar livre, como itinerantes ou ambulantes, enquanto acompanhavam os ensinamentos do Mestre, também articulados ao que se passava ao redor.

Muitos dos filósofos modernos, que beberam dessa fonte, também conceberam seus pensamentos seguindo essa mesma prática de caminhar na natureza, atentos aos elementos do fora. Também os monges budistas, considerados grandes sábios, propunham caminhos diversos para a prática do zen: as artes marciais, a cerimônia do chá, a luta com espadas ou a escrita de poemas sintéticos, conhecidos como haikais. A sabedoria sempre associada a uma prática de vida e, com ela, o exercício do rigor e da disciplina, pois uma prática é também uma jornada de superação.


Aqui, uma ressalva importante. Não se trata de uma sucessão de práticas: cumprir itens de uma lista. Trata-se, principalmente, de observar os efeitos desse exercício em nós. Daí o termo: prática de si. Pois, enquanto nos dedicamos a certa prática, também nos esculpimos, nos entalhamos, nos construímos. Tornamo-nos, portanto, parte desse ofício, nossa própria obra.

As consequências disso para as relações entre ensino e aprendizagem são muitas. A prática é um fazer que atravessa a todos, professores e alunos, todos em estado de aprendência, ainda que em pontos distintos de seus caminhos.


Se, de um lado, não existe a perspectiva de estarmos prontos de uma vez por todas, por outros, estamos sempre prontos para começar, cada um de seu lugar. Perde força a ideia de atingir a um fim pré definido ou de que haja algum tipo de finalização. A aprendizagem, como prática de si, refere-se a um processo contínuo.


Se alguém perguntar qual a característica fundamental para ser um bom professor, eu diria que é a disponibilidade para manter-se em prática, em movimento contínuo. Pois aprender e ensinar são ações que empreendemos, antes de tudo, em relação a nós mesmos, uma maneira de nos colocar em eterno retorno, refazendo percursos, recriando descobertas, reinventando trajetos a partir de novos elementos.

Assim, para acompanhar de perto o processo de aprendizagem de um outro, vemos que não é preciso ser aquele que sabe tudo. Muito pelo contrário. É preciso colocar-se também em estado de aprendência. Trata-se de um modo de estar no mundo.


Afirma-se aqui a necessidade de desconfinar os saberes das disciplinas, restaurando uma cultura de aprendizagem que se produza no encontro entre esses caminhos todos e não na exaltação de uns em detrimento de outros. Ação e pensamento, racionalidade e experimentação, palavra e prática. Todos a serviço da produção de sistemas abertos à possibilidade permanente de reconstrução, acessível a todos aqueles que se dispuserem a trilhar os caminhos da aprendizagem como prática de si.






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