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As cidades e os afetos

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 4 de fev. de 2022
  • 3 min de leitura

Há tempos que pensamos a relação do humano com o espaço, seja na forma de uma natureza selvagem, a partir da qual precisamos extrair elementos necessários à sobrevivência, seja a partir da necessidade de domar e racionalizar esta força, fazendo-a funcionar a nosso favor, tarefa atribuída aos construtores, urbanistas e arquitetos.



imagem: Marko Prelic


Se pensarmos na organização das cidades, tema que tem me interessado bastante, vemos que há muitas relações entre o modo como elas se compõem - seu clima e geografia - e o manejo de nossos fluxos e afetos, por onde se produzem e se movimentam nossos desejos.


Nas cidades, que critérios usamos para diferenciar o que é digno de se tornar cartão postal daquilo que deve ficar velado? Que rios estão autorizados a correr e em que condições? Quais fachadas devemos ou não preservar, ou, ao contrário, trabalhar por sua demolição?

Ítalo Calvino, escritor nascido em Cuba e naturalizado italiano, captou muito bem as intrincadas relações entre as cidades e nossas subjetividades, ao descrever de maneira singular sobre seu entrelaçamento com nossos desejos. Por sua letra, visualizamos as cidades sendo atravessadas pela relação entre a superfície e o subsolo, a produção de memórias, símbolos e nomes, as relações que estabelecemos com o céu e a morte e tantas outras encruzilhadas.

É pela pele de Marco Polo, viajante veneziano, que adentramos no coração das cidades invisíveis, batizadas, não por acaso, com nome de mulheres - estas, que na civilização ocidental encarnam a força dos desejos pulsantes e irrefreáveis, objeto de controle, nomeação e canalização por parte das ciências duras.


Ao percorrer suas páginas, reconhecemos imediatamente a tensão permanente entre a racionalidade geométrica dos espaços e a multiplicidade das existências humanas, sempre deslocando-se das fronteiras impostas.


Está tudo ali: os contornos e a vontade de ir além, a estabilidade da linguagem que nomeia e define versus a volatilidade dos acontecimentos que teima em fazer a língua dançar, reinventando-se a cada vez.


Em Maurília e em Cloé, em Isaura e em Otávia, emergem uma variedade de estados afetivos que nos implicam em seu processo de construção, muita vezes, desejosos dos muros que, sob o pretexto de nos proteger, terminam por limitar nossa capacidade de ver e de criar horizontes.


Seguem algumas imagens, colhidas a dedo nos cartões postais do trajeto percorrido por Marco Polo:


Anastácia, cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como minerador (...), a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia quando não passa de seu escravo.

*

Em Tamara, o olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita estar visitando Tamara, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes.

*

Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem. Quando se veem, imaginam mil coisas a respeito umas das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam.

*

Quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula; as escamas do seu passado se solidificam numa couraça impossível de se tirar; renovando-se todos os dias, a cidade conserva-se integralmente em sua única forma definitiva: a do lixo de ontem que se junta ao lixo de anteontem e de todos os dias e anos e lustros.


*


Do lixo aos céus, dos desencontros cotidianos às palavras que ditam as formas e a direção que o desejo deve tomar. Bem vemos que a relação entre os espaços que criamos para viver e nossos estados afetivos é indissociável. Se o problema das cidades é também o problema da vida, resta-nos atentar para os modos como temos nos implicado com as nossas.



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© 2022 Marta Picchioni

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