As feras que nos habitam
- Marta Picchioni

- 14 de jul. de 2022
- 4 min de leitura
Foi por acaso que o livro de Nastassja Martin me caiu nas mãos. Fui à casa de uma amiga que não via há tempos e ela me indicou o livro, achando que eu fosse gostar. De fato, logo tomei gosto pela leitura e pelo livro em si, o tema dos encontros que nos transmutam tem sido fonte inesgotável de investigação. E aqui vale a pena pensar um pouco sobre o que significa gostar de um livro: muito mais o apreço pelo incômodo que desloca, do que um gosto pela calmaria de uma narrativa reconfortante. Talvez seja isso: tomar gosto pela provocação bem feita que a boa literatura pode trazer.

E foi o que aconteceu: a leitura me provocou e provocou discussões em mim. Ao longo do texto, a formulação de argumentos e contra argumentos revela que também cabe ao leitor abrir campo para a criação de sentidos para uma obra que se desdobra infinitamente e a cada encontro.
Antropóloga em trabalho de campo - que mais que um trabalho era motivação de vida - ela nos conta sobre a insólita experiência de ter sobrevivido, não sem custo, ao embate com um urso. O livro nasce da tentativa de dar sentido a essa experiência, um longo e necessário processo de digestão a isso que lhe aconteceu e a desalojou.
Pelas linhas e entrelinhas do texto, é possível captar: cada pequeno elemento que vem a configurar a cena do grande encontro já estava lá. Ela, o urso, os sonhos que os colocam em conexão, a paixão que aos poucos esbarra numa tênue linha de repetição e, então, temos um fio narrativo que sempre pode ser torcido e reapresentado. Ela se encontrou com o urso, assim, como obra do acaso? Ou havia, desde o início, uma busca em curso pelo encontro entre mulher e fera? E ainda: será que se pode distinguir com clareza quem ali era a fera?
Se para o animismo, objeto de estudo da autora, há um humano potencial prestes a saltar sob a pele de cada animal ao redor, aqui o jogo se inverte e podemos farejar o bicho à espreita sob o rosto que sustenta algum grau de humanidade em nós.
É quando a obra ultrapassa as próprias bordas e passa a dialogar com questões que atravessam o olhar de cada leitor. A partir do encontro entre urso e mulher, transportei-me à obra de Herman Melville, Moby Dick, chegando à figura sisuda do Capitão Ahab. Obcecado pela baleia que arrancou parte de sua perna em um encontro anterior, o mundo do Capitão passa a ser povoado por imagens de Moby Dick, motivo para que uma nova expedição de caça às baleias fosse organizada. Mas enquanto a tripulação se contenta com a captura de uma baleia branca qualquer, o Capitão mantém seus olhos fixos em uma só presa: Moby Dick. Talvez não seja preciso dizer que a empreitada termina com a morte quase toda a tripulação, exceto de Ishmael, o marinheiro novato, e de Moby Dick, a fera que reinava em seu habitat natural.
No encontro de corpos entre Nastassja e o urso, e a busca explícita por confronto que anima a vida do Capitão, as linhas de desejo se cruzam e se confundem entre si, já que ambos se encontravam com suas feras, antes mesmo de seus fatídicos encontros.
Na cultura dos Even, o povo nativo com o qual Nastassja trabalhou, o universo dos sonhos é considerado tão real quanto o mundo em vigília, momento no qual as fronteiras que separam as diferentes espécies se diluem, tornando possível a comunicação entre todas as almas. Aqui, o sonho produz real de modo tão denso e intenso a ponto de gerar a necessidade de um encontro entre corpos, a partir do qual a antropóloga torna-se outra, meio mulher, meio urso, uma existência de limiar.
Mesmo que, por todos os lados, a vida não pare de acontecer e de nos proporcionar encontros geradores de diferença em nós, é este o acontecimento que a ultrapassa, o acontecimento que ela corre o risco de não dar conta e de, tal qual o gelo siberiano, congelar-se em torno de sua biografia. Pois, para que os acontecimentos não se tornem marcas acontecidas cravadas em nossas peles, é preciso pô-los na panela, como ela mesma diz.
Cabe-nos, então, explorar as linhas de desejo que nos põe exatamente na direção desses eventos que em tudo nos parecem obras do acaso. Enquanto o nativo que a acompanha no trajeto, pouco antes do encontro com o urso, explicita a clareza de não prosseguir a partir de determinado ponto da caminhada, ela vai em frente, seguindo a linha de desejo em curso.
Chego agora ao Malawi. O cenário é o do filme brasileiro Gabriel e a Montanha, inspirado no encontro do jovem João e o Monte Mulanje e, depois, vou ao clássico Na Natureza selvagem, onde um erro de dosagem, da boa medida entre ir e ficar, acaba por definir o destino dos personagens.
Ao sobreviver ao encontro com as feras que nos habitam - a natureza selvagem dos desejos que nos compõem - é preciso dar conta disso, de sobreviver quando já não é possível se reconhecer na própria pele, na própria história, às vezes, nem na própria espécie.
Tal experiência radical de desterritorialização, nos mostra a força de um desejo, ao mesmo tempo que nos lembra da importância de atentarmos aos protocolos de experimentação. Se provocar e tensionar os arranjos instituídos é tarefa necessária, criar boas condições para receber o acontecimento que vem como avalanche também o é.
Assim, ao sermos hospitaleiros diante da vida e de seus presentes, há que se ter atenção aos usos que fazemos de nossas linhas de fuga, que podem tanto nos levar à construção de saídas criadoras de mundo, como de saídas de abolição.
Como habitar nossos devires animais, devires baleias e ursos, sem que o processo de diferenciação de si, confunda-se com um processo de indiferenciação? É preciso, então, nos atentar à arte das doses, aos devires imperceptíveis, que estão ao redor e disponíveis, oferecendo-se como oportunidades para experimentarmos pequenos graus de desterritorialização.
Se é preciso abrir campo para escutar as feras, é preciso também criar um bom solo para que possamos construir sentidos à experiência, sem o qual a simples e pura entrega pode se tornar uma linha sem possibilidade de retomada.






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