Avaliação de si: sob o imperativo da visibilidade
- Marta Picchioni
- 15 de abr. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 16 de abr. de 2021
Luz, câmera, ação! A mídia televisiva nasce com a era industrial e, juntas, compõem um dispositivo fundamental para a formação da cultura de massas. Neste contexto, não apenas os desejos são produzidos em escala, como nossa própria subjetividade se orienta para o alcance de objetos sempre exteriores e distantes à experiência vivida. Passamos a projetar nossos sonhos e eus-ideais nos corpos daqueles artistas iluminados, ainda que também eles fossem prisioneiros da imagem congelada que inventaram para si.

De lá para cá, os dispositivos de produção de subjetividades se sofisticaram, espraiando-se por todo o tecido social. O próprio dispositivo midiático segmentarizou-se e, hoje, opera em rede, sobrepondo-se às antigas e pesadas instituições disciplinares. É a vida de cada um de nós - artistas de si - que passa e se passa sob o imperativo dos holofotes.
Falem bem ou falem mal, mas falem de mim! - é o slogan muito bem explorado pela cultura do marketing onde, o que interessa é estar em evidência: fazer-se presente e tornar-se presença na medida em que se produz um efeito de corpo, de materialidade, pela simples incitação de um falar de si.
Os preceitos de igualdade, transparência e visibilidade, pilares das sociedades democráticas, já não se restringem a um certo território político, mas foram apropriados por muitas instituições sociais - entre elas as de ensino - onde atuam fabricando modos de vida por meio de uma prática tão sutil quanto efetiva: a condução das condutas. Conduzir condutas - o modo de subjetivar dos governos democráticos - significa atuar de forma preventiva sobre a formação dos sujeitos e de seus comportamentos e, para que isto se efetive de forma plena e duradoura, é preciso começar o quanto antes.
Uma das maneiras onde vemos as práticas produtivas/preventivas de formação do sujeito escolar em ação é na Avaliação. Se, em tempos disciplinares elas se aplicavam a situações pontuais, onde os estudantes eram convocados a fazer uma prova que comprovasse, em ato e ao final de determinado percurso, aquilo que de fato apreenderam sobre sua jornada escolar, hoje, com o princípio democrático da visibilidade em cena, o que passa a estar em questão é o constante investimento auto-avaliativo, exercido por meio de diferentes estratégias que investem no dar-se a ver, o que requer do estudante que se mostre de modo permanente e integral.
Agora, o furor avaliativo já não se restringe a situações pontuais, mas recai sobre todo e qualquer movimento emitido pelos sujeitos escolares: desde suas brincadeiras supostamente livres, durante os recreios, até o modo como variam ou não suas parcerias, se preferem trabalhar a sós ou em grupo, se participam das aulas com boas perguntas, chegando ao desempenho nas disciplinas regulares propriamente ditas.
Tudo passa a ser objeto de análise por parte de uma rede de profissionais atenta e onipresente, de modo que encontrar uma brecha para viver minimamente livre do olhar dos adultos tem se tornado um empreendimento da ordem do impossível.
Em tempos democrático-participativos onde o imperativo da visibilidade é um dos protagonistas, devemos levar em conta que as máquinas de fazer ver já não se restringem aos próprios olhos, mas a uma infinidade de extensões desses: câmeras, celulares, colegas atentos, inspetores estrategicamente alojados, lupas, binóculos, telescópios, chips implantados em nosso próprio desejo de nos tornar receptáculo desses tantos olhares vigilantes que operam na finíssima linha que se situa entre o zelo e o controle.
Junto às máquinas de ver, emergem as tecnologias do fazer falar. Jorge Larrosa, filósofo e pensador da educação nascido na Espanha, nos mostra como as instituições escolares tornaram-se uma extensão dos aparatos jurídicos e subjetivantes, cujo objetivo maior é a produção de condutas normativas e bem ajustadas ao maquinário social, desde a mais tenra idade.
Ele descreve como o uso desses dispositivos incita os estudantes a um permanente jogo de expressividade de si que, embora sempre conduzido por um adulto, precisa do amparo de seus pares para se legitimar. A lógica de produção de visibilidades, quando transposta à escola, caminha pelas etapas do ver-se, do expressar-se, do narrar-se, do julgar-se, atingindo por fim, o famigerado domínio de si. Tais etapas, postas em prática em uma variedade de fazeres do âmbito pedagógico, trazem para o centro do palco as condutas dos estudantes, que passam a ser o foco e o centro dos olhares do controle, tanto ou mais que suas aprendizagens.
De acordo com este pensador, há todo um investimento na construção de uma consciência de si, e na capacidade de expressá-la, criando uma narrativa da própria vida que passa a alçar um certo estatuto de verdade diante do outro. Em sequência, chega-se ao julgamento propriamente dito onde, diante do olhar dos muitos juízes ali constituídos, deve-se comparar se a narrativa criada condiz com o caminhar das condutas exemplares e, se não, o que é preciso fazer para aproximar umas das outras.
A prova dos nove chega com a última etapa, o domínio ou o governo de si, onde cada sujeito singular realizou o procedimento de introjetar a conduta ideal e dirigir seus passos de acordo com tais preceitos. O sujeito aqui, torna-se capaz de autorregular-se, estando plenamente adaptado às produções da maquinaria social que o precede.
É este o modo de operar que se dissemina nas mais variadas vertentes do fazer escolar, mostrando que a lógica dos holofotes, inicialmente presente na produção de uma cultura de massa, hoje atua em muitos lugares insuspeitos de modo que seu objetivo é, não apenas mapear o sujeito em sua totalidade, mas forjá-lo enquanto tal.
Na contramão desse processo, boa parte do que nos interessa, diz respeito àquilo que de novo quer emergir e se afirmar como vida intensa e pulsante, para além das permissões e enquadramentos da maquinaria escolar. Esse processo de germinação, no entanto, nem sempre se dá a ver - é avesso à lógica das luzes - na medida em que requer seu próprio tempo de maturação para emergir.
Trata-se de dar caminho para aquilo que nos move, para as linhas de força do desejo em nós, sempre atuantes ainda que invisíveis - e que justamente por se manterem não expressas e imperceptíveis, resistem às capturas pré estabelecidas dos fazeres escolares.
É neste desejo intensivo que nos interessa investir, não para domesticá-lo, tornando-o parte da engrenagem instituída, mas para garantir, também na escola, seu espaço de afirmação e criação - liberando-o dos enquadres cristalizados, dos formulários massificados, das notas, das provações - para que possa de certa maneira encontrar legitimidade no simples fato e ato de sua existência.
Será que a escola consegue sustentar esta revolução?
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