Bashô: o poeta da pura presença
- Marta Picchioni
- 6 de mai. de 2021
- 4 min de leitura
O que acontece exatamente agora ao seu redor? E que efeitos isso provoca em você?
Nascido em 1644, no Japão feudal, Bashô foi um samurai - o braço armado da classe dominante do Japão medieval. Os samurais eram guerreiros orientados à arte do dever e do sacrifício. Mestres das lutas corporais e da devoção ao seu senhor, aprendizes do chamado bushidô, ou caminho do guerreiro.

Quando morre o seu Senhor, o barão Todô Shinshiro, Bashô torna-se uma espécie de órfão, um ronin: aqueles samurais que não tem mais a quem servir.
Começa aí sua peregrinação e a parte mais interessante de sua vida. Sem lugar fixo onde ancorar, Bashô caminha ao encontro do que a vida lhe apresenta, afirmando o acaso como parte do destino. Assim, trabalha por um breve período como funcionário público, responsável pelo sistema de irrigação da cidade de Edo, atual Tóquio, e logo depois, torna-se um improvável professor de poesia.
Bashô, o guerreiro poeta. Uma composição intrigante entre força e sensibilidade, estratégia e sutileza.
Viverá a vida em trânsito, deslocando-se a pé e sem bagagem pelos caminhos de seu país, em um contexto em que a hospitalidade era uma arte oferecida aos peregrinos, sem que se esperasse nada em troca, além dos bons encontros, da partilha do tempo e das histórias vividas.
Ao caminhar, Bashô dedicava-se à prática do zen, que trata da busca pelo encontro com a lei de Buda, presente em cada pequeno fragmento de vida - já que Buda está em toda parte e em cada entidade - a qual Bashô passa a observar em suas andanças, enquanto exercitava a melhor forma de expressá-la.
Assim, o haikai foi o meio de expressão eleito por este andarilho para materializar a relação cultivada entre corpo, tempo e pensamento. Esta poesia minimalista e milenar existia muito antes de Bashô, assemelhando-se a trovinhas e quadrinhas rítmicas, permeadas por um tom humorístico, que dava certa leveza ao fazer cotidiano. Foi por meio de seu corpo sensível, no entanto, que tais escrituras adquiriram a forma sintética, que materializa, a um só tempo, um alto grau de profundidade e superfície, dando ao pensamento uma consistência própria.
Em seu modo de fazer, as trovinhas cheias de graça dão lugar a novos artifícios, tornando-se micro tratados da vida intensiva, na medida em que partem do que está aí, disponível à experiência de qualquer um, e produzem, na forma de poesia, sons e jogos de linguagem que alcançam uma camada inédita de efetuação.
Paulo Leminski, um dos biógrafos-criadores da figura de Bashô, descreve seus haikais como microilíadas zen. A Ilíada, célebre poema épico de autoria atribuída a Homero, conta sobre a guerra de Tróia e assemelha-se a uma saga heróica, com múltiplos personagens, conflitos e desdobramentos. Aos olhos de Leminski, no entanto, sua essência pode ser apreendida pelo formato sintético e mínimo dos poemas de Bashô, como uma saga da vida em acontecimento. Vejamos dois exemplos:
velha lagoa
o sapo salta
o som da água
*
casca oca
a cigarra
cantou-se toda
O haikai apresenta-se como manifestação de singularidade e da zona comum dos encontros: aquilo que está disponível a cada um de nós e que, no entanto, produzirá efeitos tão diversos quantos forem os modos como nos encontraremos com este acontecer.
Este micro registro da vida cotidiana segue regras bem marcadas: um primeiro verso que se refere ao contexto, a uma visão cosmológica da vida; um segundo que trata do elemento surpresa, o acontecimento ou ação que imprime uma variação ao ambiente e faz com que tudo mude e, por fim, o terceiro verso, que trata dos efeitos produzidos sobre os corpos após seu encontro com o evento surpresa, sem que se busque nenhum tipo de explicação transcendente ao que acontece.
A busca pelo estado de pura presença era, para Bashô e os demais praticantes do zen, um exercício diário de observação daquilo que se mostra aos sentidos, produzindo diferença em nós. Não apenas observar o que se passa, como também os efeitos que essa passagem produz.
Não há intencionalidade nem pretensão de criar uma mensagem edificante, moralidades absolutas ou algum tipo de mensagem sobre a arte de viver, apenas o permanente exercício de conectar-se ao simples, às linhas de acontecimento e sua síntese em forma de poesia, onde uma palavra passa por dentro da outra, deixando sua marca em som ou imagem.
voam libélulas
e sobre elas
um céu cheio delas
Há aqui uma espécie de eterno retorno. Todo um jogo em aberto, passível de múltiplas imagens e interpretações, a partir das ricas possibilidades que os ideogramas japoneses, misto de escrita e desenho, nos permitem acessar e que se distancia, em boa medida, do código alfabético ocidental, caracterizado por uma certa linearidade que nos indica um sentido único de leitura.
É preciso considerar, portanto, as particularidades de cada sistema linguístico para ler e produzir esses micros registros da vida em acontecimento, deixando-nos afetar pela riqueza sonora e musicalidade de nossa língua sincrética, repleta de variantes e regionalismos que dão materialidade à tradição dos repentes e dos cordéis, por exemplo.
Diz Leminski que um haikai é feito e lido com todos os sentidos, com o corpo em presença.
Diz Bashô que é preciso que se respeite as regras, para então jogá-las todas fora, fabricando assim uma estética da invenção.
Leminski, Bashô e tantos outros. Poetas que nos deixam como legado o registro de parte de seu percurso ao fazer de suas vidas obras de arte. Servem-nos de inspiração. Não, como diz Bashô, para segui-los em seus caminhos, mas para ousarmos trilhar os nossos. Para tomá-los como aliados, companheiros de jornada.
No fim, trata-se de, como eles, exercitar a capacidade de jogar com as palavras e brincar com os sentidos, saber das regras, mas tomá-las como passageiras, recriando-as a cada circunstância e conforme o contexto.
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