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Bruta Flor: sobre o desejo e seu desassossego

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 24 de mai. de 2022
  • 2 min de leitura

Onde queres revólver, sou coqueiro

E onde queres dinheiro, sou paixão

Onde queres descanso, sou desejo

E onde sou só desejo, queres não


Caetano Veloso



imagem: Hülya Özdemir


Por onde anda seu desejo? Por onde ele corre ou descansa?


Eis aí uma busca que movimenta esforços e alimenta algo de nossa vontade de decifração, uma vontade que, realizada, nos levaria a uma vida de paz e sossego, onde, de posse de nosso desejo - essa chama primeira - nos tornaríamos, enfim, senhores de nós mesmos.


E então, a má notícia: ao que parece, pouco nos basta saber ou dizer de nosso desejo, apreendendo-o com as mãos e estudando-o em minúcia, como a um objeto ou substância que precisa ser nomeada. É que, como cantou Caetano, o desejo, tal como a bruta flor, já é e não para de mudar!


Quando pensamos tê-lo localizado, ele já tratou de escapulir, sempre deslizante e em busca de mais intensidade, afirmando sua capacidade de brotar de todos os tipos de solo, dos mais aos menos férteis. Enquanto nos ocupamos de nomeá-lo, ele já transmutou-se, alheio à qualquer expectativa de correspondência ou reciprocidade.


O desejo, essa fagulha sempre acesa, se afirma em ato e pelo que é. Quando se mostra, costuma ser ao revés, um desejo bandido que não obedece a convenções ou àquilo que dele se possa prever. Pois, se tal qual a vida, ele é real e de viés, o que o desejo quer é encontrar vias de expressão para sua força de existir, doa a quem doer.


A pergunta então se transmuta e já não interessa saber de seu nome ou sobre seus caminhos, senão investigar o ainda mais profundo: o que, em nós, deseja exatamente aquilo que nos acontece.


É quando tem início a tarefa cartográfica: baixar a guarda e fazer dormir as racionalizações bem arquitetadas para adentrar a força de um campo de escuta, onde o desejo diz sem que precise falar. Adentrar o campo com o corpo todo, com os pés e o cotovelo, que costuma ser o primeiro a doer. É preciso confiar na intuição e seguir em direção à luz, mesmo que seja preciso caminhar no escuro em boa parte do trajeto.


É aqui que o desejo se mostra, desmontando o monopólio da razão e acionando a escuta de corpo todo, o pensar com os sonhos, a criação de mundo pelas linguagens brincantes. Já não se trata de investir numa postura decifratória, mas de deixar-se surpreender pelo que ele nos traz e, quem sabe, conquistar a coragem de afirmá-lo em toda necessidade de expansão.


Bruta flor: o desejo que não se decifra por código morse ou por nomeação, pois enquanto há fagulha, há que se cuidar do fogo.


É preciso então afirmar sua força crua, a brutalidade que emerge sem pedir autorização e, uma vez ali, estremece o solo e desassossega o coração. Do desejo, importa menos o que dele se sabe, do que o que já está em campo, seja nos sonhos, no corpo, nas artes, no riso. Um vasto e fértil campo de pesquisa, de onde poderemos fabricar vidas o mais autênticas possíveis.


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© 2022 Marta Picchioni

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