Caminhando com os peripatéticos
- Marta Picchioni
- 27 de mai. de 2021
- 5 min de leitura
Ao pensar em um ambiente de aprendizagem ideal é comum imaginarmos um lugar tranquilo, silencioso, com farto acesso a livros e cadernos, atividades de pesquisa, registro e observação. Tal ambiente, via de regra, coincide com nossas memórias escolares, em que as salas de aula ou bibliotecas eram ocupadas por corpos quietos e sentados, que tinham nesta experiência sua mais importante referência.

Herdeiros da tradição religiosa e, mais tarde, dos pressupostos científicos, tais ambientes foram concebidos com a finalidade de produzir certo tipo de pensamento e de sujeito: estruturado, racional e disciplinado, para o qual as premissas de observação e reprodução dos ensinamentos do mestre serviam como medidores de sucesso. Em consonância com a linguagem dominante, tal tipo de ensino prima pela perpetuação de modelos já testados e instituídos, que devem ser apreendidos e reproduzidos em um ambiente protegido e controlado: a escola.
Entre o universo doméstico e a vida social mais ampla, a tarefa educativa instrucional recai sobre a instituição escolar, um lugar com características bem marcadas, com regras e tempos próprios e onde as futuras gerações são preparadas para dar continuidade ao projeto civilizatório empreendido pela geração anterior e, assim, sucessivamente.
Ocorre que, como sabemos, nem sempre foi assim e, provavelmente, nem sempre será.
Por volta de 336 a.C. um ambiente de aprendizagem de excelência tinha características bastante distintas da proposta pelo modelo escolar moderno. No lugar dos corpos controlados, investia-se na alternância dos movimentos: entre a concentração necessária aos procedimentos de leitura e escrita e a afirmação dos corpos pulsantes, que caminhavam ao ar livre enquanto aprendiam, a partir das relações estabelecidas com o entorno. Tratava-se da Escola Peripatética, fundada por Aristóteles.
Ao contrário de alunos - aqueles a quem falta luz própria e que, portanto, precisam ser iluminados pelo saber que emana do mestre - os peripatéticos faziam de seu lugar itinerante, condição de aprendizagem. Assim, ao caminharem pelas ruas, pela praça, pela pólis, deixavam-se afetar pelas relações em jogo, fazendo dessa experiência um disparador para pesquisas e investigações ativas.
Nada falta àquele que caminha. Sua curiosidade acerca do mundo emerge, justamente, no contato direto com o entorno e com as existências que o habitam. As aprendizagens acontecem a partir desse ambiente comum, de modo que um lugar apartado e protegido por muros não oferece as condições necessárias ao convívio e às aprendizagens.
A separação entre corpo e mente, considerada um dos pilares da escola moderna, também não encontra ressonância nas práticas itinerantes dos peripatéticos. Um e outro compõem um conjunto integrado, de modo que um corpo ativo e pensante é ocasião para produção de uma mente equivalente, assim como o movimento é condição para a produção de um pensamento nômade, que circula e ganha corpo ao caminhar.
A cartesiana separação entre dentro e fora também não faz sentido, uma vez que é no encontro entre os corpos moventes que emergem as condições de um pensar articulado à vida. Ao contrário da repetição de modelos ideais e herméticos, investe-se nas alternâncias das composições - e não num ou noutro estado fixo. Assim como acontece na chamada superfície de Moebius há uma continuidade entre dentro e fora, de modo que no lugar de uma oposição irreconciliável, um se alimenta do outro e se constitui em relação.
A aproximação entre crianças e as cidades tem sido uma ideia que ganha corpo e espaço nos fazeres pedagógicos do presente. Estudantes atravessam os portões de suas escolas para conhecer o bairro, andar pelo quarteirão, observar a paisagem urbana, frequentar equipamentos culturais e parques, conversar com comerciantes ou moradores da região. Assim, passam a sentir-se parte do local em que vivem e estudam, para além das paredes protetoras que nós, adultos, não nos cansamos de erguer entre eles e o mundo.
Trata-se de valorizar experiências que rompem com a lógica do medo para instaurar uma relação de confiança com o fora e a partir dos encontros. Estar do lado de fora é poder torná-lo nosso, territorializá-lo, de modo que a célebre recomendação “não fale com estranhos” pode aqui ser tensionada: nem todo estranho é um inimigo, nem todo estranhamento deve ser evitado.
Dentro e fora, retração e expansão, tornam-se elementos de variação importantes nos processos de aprendizagem e subjetivação. Mais do que estar num lugar ou noutro, o importante é saber transitar. A prática peripatética não apenas permite, como valoriza a aprendizagem como lugar de fluxo e de indeterminação, na medida em que coloca continuamente em jogo as aprendizagens já constituídas daquelas em processo de constituição. É justamente essa alternância que restabelece, a cada vez, o frescor de um pensamento que se inspira e se atualiza a partir dos encontros com as diversas manifestações do mundo em nós.
Aqui, a figura imaginária do sábio como a de um velho senhor apartado da vida em comunidade dá lugar a outra, que fala da circulação de múltiplos saberes produzidos a partir do tensionamento entre os muitos pares de opostos: dentro e fora, escola e rua, casa e escola, professores e estudantes, livros e experiências, passado e futuro e daí em diante. São saberes que já não se comportam de acordo com uma lógica de posse, mas de uso e de produção - na medida em que só se afirmam e se legitimam em ato.
Já não se trata de acessar um saber pré existente: é preciso produzi-lo e recriá-lo a cada vez. A ideia de movimento se estende à necessidade de ampliar e perfurar contornos, atualizando o já sabido frente à experiência do novo. Tal deslocamento pressupõe certa disponibilidade para perambular, afirmando, assim, o valor da caminhada, mais que a linha de chegada.
Abrir-se ao movimento do processo é aceitar compor-se com o inusitado e, portanto, aprender a suportar certo grau de imprevisibilidade, que permite abrir mão da lógica de controle sobre os efeitos das práticas de ensino no outro. Em uma sociedade acossada pelo medo do fora, a prática peripatética nos pede coragem de ousar e inventar novos dispositivos de se compor com a vida, para além dos muros protetores.
Observamos uma clara oposição aos fazeres sedentarizados, onde a aderência aos modelos fixos e a assepsia dos discursos racionalistas acaba por nos deixar embotados e até cegos diante da paisagem mutante que nos povoa. Investir na imprevisibilidade da andança é, então, uma aposta na renovação do olhar frente ao mundo e condição para que possamos nos lançar numa jornada de bem aventurança.
Como nos contos de fadas, os mais novos ganham o mundo e podem aprender com a trajetória, protegidos não do fora, mas do olhar controlador dos adultos. Viver e aprender com a experiência da itinerância fala diretamente à necessidade de investir e valorizar um plano comum de encontros, onde o estranho está sempre em vias de se fazer conhecer.
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