Como devo fazer? a arte de transitar por caminhos incertos
- Marta Picchioni
- 15 de jul. de 2021
- 3 min de leitura
Cena Inaugural: chegam ao consultório do pediatra o casal e o bebê recém nascido. Além das perguntas protocolares, a consulta será a de rotina: pesar, medir, examinar os reflexos esperados para a idade do bebê e constatar se tudo caminha conforme o esperado para a curva normal do desenvolvimento. Provavelmente, sairão de lá com algum tipo de prescrição sobre o sono, a alimentação e as rotinas.

Ao longo do século passado, a medicina e mais especificamente a pediatria, se encarregaram de acompanhar e gerir o bom funcionamento dos corpos recém chegados ao mundo. Embora seus efeitos recaíssem de modo imediato sobre os indivíduos, tratava-se, antes, de uma política de gestão do corpo coletivo, a população.
A criação de uma zona ideal de normalidade, em nome de uma boa saúde, logo se espraia para outros campos do saber, também responsáveis por cuidar e tratar da primeira infância, como a pedagogia e a psicologia.
Então, as práticas de produção dessa zona ideal se alargam, chegando às escolas e aos consultórios, e mesmo que coloquem em xeque a supremacia do saber médico, terminam por reproduzi-lo. A vontade de prescrição passa a fazer parte de nossos desejos, que movimentam - e consomem - uma vasta produção em torno dos modos ideais de se criar filhos, abarcando desde livros e documentários, até programas de Tv e, mais recentemente, a atuação de coachers da primeira infância.
Mesmo sabendo que as crianças são únicas e não vem com manual de instruções, investimos na busca por receitas e parâmetros de como agir durante a aventura que é a tarefa educativa. De algum modo, as ciências que construíram seu saber em torno do desenvolvimento infantil, terminaram por nos fazer desconfiar de nossos próprios, criando a necessidade da voz e da legitimação da figura do especialista.
Mesmo se pensarmos no indivíduo apenas como um corpo biológico, sabemos que cada organismo responde ao tratamento de modo próprio, não havendo resposta homogênea diante de um mal acometido por agente externo. No campo da educação esta afirmação ganha abrangência e intensidade, de modo que diante de nossa vontade de prescrição e da ausência por respostas padronizadas que nos deem alguma garantia, só nos resta uma alternativa: nos implicar profunda e radicalmente em encontrar nossos modos de fazer.
Trata-se então muito mais de investir nos encontros com aquela criança que temos diante de nós, para, a partir dessa relação, encontrar nossos comos: nossas próprias maneiras de fazer, pois são justamente esses modos que nos singularizam e que fazem de cada relação, única.
Diante da pergunta recorrente: como devo fazer?, fica implícita a vontade de atender a um padrão externo e pré existente de (bom) comportamento. O dever atende a uma busca de fundo moral, uma moralidade socialmente aceita, tanto quanto é, por nós, produzida.
A proposta aqui é que possamos inverter essa lógica. Ao invés de reproduzir modelos prévios e exteriores à relação, criar nossos próprios modos, pois, o que nos movimenta, em educação, é uma busca ética.
E qual seria a diferença?
Enquanto a moral nos convoca a obedecer a um ideal já estabelecido, a ética exige que nos impliquemos por cada uma de nossas escolhas. A moral fala, portanto, a uma instância transcendente e para além da dramaturgia das relações em jogo, enquanto o fazer ético nos exige presença e disponibilidade para cultivar os encontros, sustentando suas variações intensivas.
Ao nos orientarmos por um fazer ético, precisamos ter coragem e clareza suficientes para abrir mão dos parâmetros de certo e errado, de bem e de mal e de todos os binarismos que compõem nossa cultura. Um fazer ético não permite adesão a fórmulas genéricas, de modo que seu exercício está profundamente articulado ao exercício do pensamento.
Ao longo da jornada educativa, as famílias se depararão muitas e muitas vezes com a reedição daquela cena inaugural, no consultório do pediatra, mas as questões se tornarão outras e cada vez mais complexas.
Do desfralde à primeira mentira, da introdução da papinha às primeiras baladas, ao ingresso nas redes sociais, ao primeiro namoro, ao desinteresse pela escola, ao uso de bebidas alcoólicas e outras substâncias químicas, e assim por diante. Daí ser o ato educativo um longo processo sustentado, antes de tudo, por uma prática, não havendo um: o que ou como devo?, mas sim um como fiz e a observação de seus efeitos.
Há um implicar-se e um afetar-se pela experiência para, a partir dela, reconfigurá-la a cada vez. Assim, é preciso abrir mão dos deveres em sua acepção moral para que possamos nos comprometer com os caminhos, pois quando nos apegamos às formas e aos formalismos, perdemos a chance de criar nossa própria caminhada.
A tarefa educativa exige de nós certa disponibilidade para correr riscos.
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