Corpos que correm com os rios: por uma existência movente
- martasyp76
- 5 de abr. de 2023
- 3 min de leitura
O rio é um caminho que permite se deslocar,
embora faça tempo que as pessoas
tenham decidido ficar plantadas nas cidades.
Ailton Krenak

É sempre com espanto que, diante do olhar do outro sobre nossos modos de vida, notamos que nos relacionamos com os rios de uma perspectiva colonial e naturalizada. Para nós, é como se estes corpos d'água não existissem. É só com algum esforço que olhamos para os vestígios que insistem em perseverar para nos dar conta que, antes de suas águas paradas e mal cheirosas, havia ali um rio.
Enquanto assistimos ao entupimento de seus cursos por nossos dejetos, passamos a extrair água potável de nossas engenhocas, filtros ou garrafas plásticas. Geração a geração, nos acostumamos à ideia de que os rios ficam parados, enquanto nós é que nos deslocamos freneticamente, pra cá e pra lá.
E, no entanto, numa contra antropologia a lá Krenak, enxergamos com clareza que tudo se passa ao contrário: os rios é que são puro movimento! Suas águas são correntes e deslizam a diferentes velocidades, se avolumando sempre que precipita sobre seu corpo um pé d'água: sua parte que avoou.
Os rios correm conforme a necessidade de seus fluxos. São capazes de criar espaços para fazer passar o que neles excede. E, no entanto, aos olhos herdeiros de lentes coloniais, somos nós os seres de movimento.
Plantados no coração das cidades é bom que saibamos reconhecer nossa opção por uma espécie de imobilidade. Habitantes de casas verticais, nos deslocamos por elevadores e, nas atividades cotidianas, nossos corpos confinam-se em cadeiras para trabalhar e estudar. Se precisamos nos deslocar, o fazemos com os corpos também estacionados na morosidade do tráfego urbano, e ao chegar em casa, nada melhor que nos acomodarmos sentados, em frente à tv.
Eis nossos corpos! Desconectados de seus movimentos potenciais, adaptados às exigências dessa vida que criamos, como se fosse o único modo de existir. Corpos ansiosos, deprimidos, apáticos. E não pelo excesso de movimentos, mas por não considerarmos seus ciclos mais básicos, de sono e de fome, de expansão e contenção.
Tal como os corpos dos rios, os nossos também têm uma inteligência própria. São corpos pensantes e comunicantes, só é preciso aprender sua língua. Após séculos submetidos a um processo de tamponamento e asfixia, aprendemos a codificar sua linguagem sob o regime capitalístico civilizatório, cujo paradigma é o da adaptabilidade funcional às estruturas bem fundamentadas.
De seres de movimento, passamos a cultivar o gosto por uma existência sedentária: corpos que aprendem a reproduzir e desejar o que já está aí. Nossa fábrica de moldar corpos privilegia o assujeitamento às condições dominantes: trata-se de caber em modelos prévios e genéricos, portar um corpo-norma.
Tal qual os rios canalizados de nossas cidades, também nós desaprendemos a voar. Mas, ainda que contidos, nossos corpos não deixam de comunicar sua dor. Do nervo ciático aos processos de indigestão; das úlceras gástricas à apatia generalizada. Também como os rios, nossos corpos se entristecem e adoecem. É sua forma de dizer não.
Na lógica civilizatória, os nãos dos corpos tornam-se ocasião para recorrer aos fármacos e suas composições químicas, afinal, pra todo mal tem um remédio. O problema com essa lógica é que ela segue surda ao que os corpos nos comunicam, e mais uma vez, ganha força a adequação ao molde prévio.
Se os rios têm a capacidade de escoar seus fluxos, na medida em que cavam sobre o solo sua superfície de passagem; nossos corpos também produzem, na carne, seus processos singulares de desligamento ou de excessos. Caberá a nós ativar a escuta que nos permite afirmar os corpos como entidades falantes e desejantes. Corpos que sabem de si e que têm capacidade de nos apontar caminhos.
Em vez de nos agarrar a diagnósticos fechados e adaptativos, é preciso ter coragem para investir numa existência movente, que nos convoque a um movimento conciliatório, a saber, a reconexão com a materialidade do que somos: antes de tudo, corpos!
E, de preferência, do tipo que saiba voar.
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