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Cuidar do outro, cuidar de si

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 2 de dez. de 2021
  • 4 min de leitura

Quando pensamos em educação, imediatamente temos à frente duas dimensões indissociáveis, uma que é instrucional e se refere à transmissão de conhecimentos e de determinadas habilidades, e outra, que diz respeito às relações de cuidado. As intrincadas relações entre educar e cuidar sempre foram pauta para aqueles que se dedicam à educação das infâncias, ainda que, muitas vezes, o cuidado seja visto como tarefa menor.


imagem: Anna Maria Maiolino



A ideia de cuidado nos remete ao conceito de cuidado de si, que, por sua vez, remonta à antiga Grécia. Isso porque para cuidar do outro é preciso que haja escuta atenta e certa disponibilidade para fazer frente ao que emerge das relações em jogo, algo difícil de se alcançar se não realizamos um trabalho nesses mesmos termos com nós mesmos.


Na antiguidade, tal conceito aparecia como parte indissociável da arte de governar, o que é muitíssimo interessante, já que nos habituamos a pensá-lo apenas como prática individual e exercida de modo autocentrado em relação às próprias necessidades e deslocadas do entorno.


Michel Foucault, pensador e estudioso da genealogia deste conceito, apresenta o cuidado de si como um fazer intrinsecamente ético, posto que atravessa as relações que constituímos com os outros, na medida em que o ato de governar - o outro e a vida em comunidade - exige uma prática sistemática de cuidado e escuta em relação a nós mesmos.


De acordo com essa lógica, o cuidado de si não corresponde a uma espécie de culto narcísico em relação a si mesmo, como talvez a releitura moderna tenha feito parecer, mas diz do investimento em uma relação intensiva com nossos corpos e apetites, o que implica, necessariamente, nas complexas relações que estabelecemos com o entorno. Aqui, as relações entre cuidado de si e a arte de governar aparecem de maneira mais explícita, já que, de acordo com Foucault:


(...) o cuidado de si permite ocupar na cidade, na comunidade ou nas relações interindividuais o lugar conveniente, seja para exercer uma magistratura ou para manter relações de amizade. Além disso, o cuidado de si implica também a relação com um outro, uma vez que, para cuidar bem de si, é preciso ouvir as lições de um mestre. Precisa-se de um guia, de um conselheiro, de um amigo, de alguém que lhe diga a verdade. Assim, o problema das relações com os outros está presente ao longo desse desenvolvimento do cuidado de si. (A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: Ditos & Escritos V - Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004).


Como vemos, o ato de governar estabelece relações indissociáveis com o ato de cuidar de si, referindo-se tanto a um fazer no campo da política, quanto a um trabalho exercido sobre si mesmo e que implica o desenvolvimento de um autogoverno. Para desempenhar o papel de guia, conselheiro ou mestre, como fazem aqueles que se dedicam ao cuidado e à educação dos mais jovens, é preciso aprender a governar as próprias paixões, praticando uma certa arte das doses e dos usos dos afetos.


Assim, apontar caminhos não significa necessariamente praticar o cuidado de si de uma perspectiva ética. Isso porque a arte de governar não se assemelha ao desejo de imprimir nos outros nossos próprios modos de ser e estar, como se aqueles fossem à nossa imagem e semelhança. Ao contrário, aquele que pratica a arte de governar/ensinar deve reconhecer no outro uma potência de acontecer e de se diferenciar daquilo que já está posto, entendendo-o como vetor de criação de si mesmo e do entorno.


Eis porque exercer o cuidado de si requer de nós um constante autoexame para deixar de investir na tentativa de imprimir nos outros nossas próprias carências e projeções, liberando-os para experimentar modos de estar e existir inéditos, que lhe permitam a criação de caminhos próprios - ainda que atravessados por regimes de corpo, pensamento e linguagem de sua própria época.


A dimensão ética do cuidado de si aparece na medida em que nos tornamos capazes de considerar o outro como alteridade e multiplicidade de forças próprias, e não como extensão de nós mesmos. O outro como diferença, e não como semelhança. Ainda, de acordo com Foucault, a condução ética da vida diz respeito a certa maneira de ser e de se conduzir, que se traduz por nossos hábitos, usos do corpo e pelos modos como respondemos aos acontecimentos - ou os usos que somos capazes de fazer daquilo que nos acontece.


Aqui, fica claro que para se comprometer com a tarefa educativa, já não basta lançar mão de receitas prévias ou prescrições que nos indiquem certos modos de fazer: teremos de descobrir nossos próprios modos. Trata-se, portanto, da disponibilidade para acompanhar percursos, o que, para os antigos era uma forma bem concreta de exercitar certas práticas de liberdade, entendida naquele contexto como atos de experimentação.


Exercer a liberdade significa dedicar-se a práticas associadas aos usos éticos dos corpos e dos afetos, temas caros à noção de cuidado de si e também considerada pelos gregos uma questão eminentemente política, uma vez que seu exercício significa, em última instância, não deixar-se escravizar pelos próprios apetites.


Tomando tal perspectiva como ponto de partida, entendemos que cuidar do outro é cuidar de si, e vice versa. Assim, para que possamos exercer práticas de cuidado em relação aos mais novos, acompanhando-os em seus percursos singulares de vida, é preciso que as adotemos em relação a nós mesmos, fazendo da vida uma espécie de obra em permanente estado de revisão e de estilização: a vida como obra de arte.


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