Cultivar infâncias: da tutela desmedida à participação da vida em comum
- Marta Picchioni
- 24 de jun. de 2021
- 5 min de leitura
Entender a educação como um campo atravessado por tantos outros é condição para pensarmos o que se diz e se faz por e em nome das crianças. Considerar sua inserção em diferentes contextos, as forças das relações que estabelecem entre si e aquelas que emanam da própria infância é condição importante para que pratiquemos uma educação à sua altura: mais próxima à superfície.

imagem: cândido portinari
A ideia de infância, tal como criada e proliferada na modernidade, partiu de sua definição como uma fase da vida, um período no qual as crianças deveriam ser protegidas e cuidadas de maneira especial. Tal ideário também se configurou como a proposição de um modelo hegemônico, pautando certo modo de ser e fazer que se estendia tanto às crianças como às suas famílias.
Tal como as mulheres, os povos originários e os desvirtuados, as crianças também faziam parte de um mundo considerado selvagem e desviante, que deveria ser domesticado por meio da educação. Ainda que a visão sobre as crianças tenha transitado entre o modelo selvagem e o angelical, o que se anunciava em ambos os casos eram as medidas corretivas e protetivas, que as colocavam, de largada, como entidades à parte do contexto social mais amplo.
Ao se ter em mente uma infância idealmente estruturada, torna-se evidente que grande parte das crianças de carne e osso não se enquadraria nos estritos moldes em jogo, de modo que, junto às suas famílias, foram consideradas inadequadas, insuficientes ou disfuncionais. Foi preciso constituir toda uma rede de saberes e poderes para dar conta de prover as condições necessárias à fabricação desta infância ideal, onde a instância protetiva figurou como eixo central.
Mas, afinal, do que as crianças precisavam - e ainda precisam - ser protegidas? Se, de um lado, a criança selvagem devia ser protegida de seus próprios impulsos, de outro, a angelical devia ser poupada da maldade que vinha de fora, do mundo adulto. Nesta lógica, é o próprio mundo que se configura como lugar de perigo de modo que a solução protetiva se apresenta como a criação de um lugar apartado dos demais e onde a infância pudesse desabrochar junto às boas - e controladas - influências.
Junto ao lugar ideal, cria-se todo um regime de corpo e de linguagem. Se a escola é, por definição, a casa das crianças, nela pratica-se também uma linguagem especial, por vezes bastante infantilizada - uma espécie de tatibitati marcado por melodias repetitivas com o intuito de lhes ensinar a marcação do tempo, os bons modos, os números, as letras e por aí afora.
Inventa-se aí uma cultura para a infância, e como parte dela toda uma rede de suposições sobre seus gostos e preferências, devidamente explorados e também produzidos pela cultura do marketing. Voltado a este segmento, as iniciativas de mercado se ocupam em criar personagens, linhas de alimentos específicos, programas de tevê, brinquedos corriqueiros ou os dito educativos, cujos cantos arredondados e as cores fortes são artifícios para atrair sua atenção e formar desde cedo um seleto público consumidor.
Eis que nos encontramos em um ponto nevrálgico em que a proteção e a segurança, praticadas em nome da preservação de uma certa infância, convertem-se em tutela desmedida, terminando por produzir uma espécie de efeito reverso, na medida em que retiram das crianças a possibilidade de produzir linguagens próprias e criar modos singulares de ser e estar no mundo - uma cultura da infância.
Há aqui uma importante virada conceitual, em muito inspirada pelo conhecimento advindo de outras culturas e modos de vida como, por exemplo, os saberes produzidos por diversos povos originários. Estes trazem à tona outras práticas de convívio entre adultos e crianças, integrados desde sempre à vida em comunidade e onde crianças e adultos compartilham das formas de dormir, se alimentar e brincar, além de terem nas atividades sociais comum a todo o grupo, uma fonte inesgotável de participação e aprendizagem.
Eis porque o conceito de infância promulgado na modernidade nos faz pensar que insuficientes nunca foram as crianças ou suas famílias, mas antes, o próprio conceito e sua formulação, pautada em um modelo único que se pretendia universal e que, em nome da ideia de proteção, criou formas de se dirigir à infância que desconsideravam seus modos de expressão.
Estudiosos das infâncias que bebem da fonte do precioso estudo feito por Philippe Áries, documentado no livro História Social da Criança e da Família, têm questionado o lugar de destaque dado ao discurso da proteção nos últimos séculos, o que culminou com a produção de uma cultura para a infância ao invés de outras, produzidas pelas próprias crianças. A diferença entre um e outro modo fica clara ao levarmos em conta seu ponto de partida: no primeiro caso, trata-se do olhar adulto com vistas a produção de um modelo único e ideal de infância, voltado às necessidades de seu próprio mundo, enquanto no segundo, o que está em jogo é a criação de condições que favoreçam os modos de expressão próprios das crianças e de cada uma delas, o que só é possível a partir da observação atenta de seus corpos e linguagens.
Na passagem de um a outro, o discurso protetivo centrado no medo do adulto, cede lugar às crianças e suas possibilidades expressivas naquilo que se configura como a produção de uma cultura sobre si. Saem de cena a adesão massiva a um marketing voltado a este público, assim como o uso de uma linguagem povoada por diminutivos e objetos “próprios à idade”. Saem os brinquedos estereotipados ou eletrônicos, que se brincam sozinhos, os programas barulhentos e as atividades “recreativas” dirigidas por adultos tão ou mais infantilizados que as próprias crianças. Saem os lanches ultraprocessados que têm como apelo um objeto de consumo em forma de brinde e tudo aquilo que procura acoplar na criança a ideia de um mini consumidor.
O que está em jogo, como se vê, é a afirmação das condições necessárias para que as crianças possam experimentar e criar meios próprios de expressão que, se de um lado não tornam sua existência apartada do mundo dos adultos, de outro, já não aderem à lógica pré formatada por ele proposta. Trata-se de crianças que desde cedo possam, a seu modo, transitar pela cidade, frequentar seus parques e demais espaços de lazer e cultura, tomar parte das atividades da vida social, entendendo que a ideia de proteção só interessa quando e se associada à vertente de uma participação integrada.
Trata-se, finalmente, de propor uma ou mais infâncias ativas, que têm como ponto de partida seus corpos, afetos e modos de expressão, acolhidos pelo mundo do adulto e não o contrário. Aqui, já não basta atuar em nome das crianças e de sua proteção: é preciso ouvir seus gestos e dar lugar ao que por meio deles quer emergir na cena social mais ampla, das quais as crianças passam, desde o início, a tomar parte, sempre a seu modo.
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