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Currículos e contra currículos: dos usos aos processos de fabricação

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 20 de mai. de 2021
  • 4 min de leitura

A ideia de currículo acompanha as instituições de ensino desde seus primórdios. Tal como indica a etimologia da palavra, currículo vem do latim currere e nos remete à ideia de rota, percurso ou trajetória. Ao aportar na escola, o currículo torna-se um organizador dos processos ali em curso, na medida em que prevê, registra e documenta as ações empreendidas ao longo do tempo.



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imagem: Adriana Varejão.


Deste modo, historicamente, o currículo tem pautado as propostas de ensino que se desenvolvem nas escolas. É ele o instrumento de referência que fornece aos profissionais da educação certos parâmetros para que possam planejar e gerenciar suas ações junto aos grupos de estudantes, dando origem a outro instrumento institucional: o planejamento.


Conectado às temporalidades de cada instituição, o planejamento considera as fragmentações do tempo, próprias do universo escolar em seu encontro com as competências e habilidades a serem desenvolvidas em cada disciplina, de modo a promover mais ou menos conexões entre elas e a ajustar em número de aulas e sequências, a duração de tudo aquilo que precisa ser desenvolvido em cada grupo ou sala de aula.


Um e outro - currículo e planejamento - devem nos servir de horizonte e estar a serviço das necessidades que aparecem na base, oferecendo-se como registros de referência ao qual podemos consultar e nos pautar para fazer boas escolhas no que se refere à condução das aprendizagens.


O que acontece muitas vezes, no entanto, é que ambos acabam por assumir a condição de protagonistas, como se valessem por si mesmos. Deste modo, terminamos por estabelecer com eles uma relação de passividade, onde a pura e simples aplicação daquilo que pede o documento oficial torna-se o grande objetivo dos fazeres escolares - independente do que se passa em cada instituição, em cada grupo de estudantes, em cada sala de aula singular.


Aqui, o currículo é entendido e experimentado como uma construção que chega pronta e a qual devemos apenas nos adaptar. O efeito desse modo de usar é, justamente, a produção de um encontro passivo e burocrático entre documento oficial e práticas educativas, estas últimas mero receptáculos de proposições vindas de outras cabeças pensantes - um grave problema.


Nesse registro, o currículo como horizonte de sustentação dos percursos escolares, converte-se em instrumento canônico, quase intocável, imutável, que acaba por servir ao intuito de reproduzir práticas de ensino, claramente, uma inversão de suas funções.

Diante de tal modo de usar é preciso reafirmar outro: o currículo como meio. Aqui, ele se torna inacabado. Instrumento, ferramenta ou fonte de inspiração. Passível de novas composições, recortes, usos e desusos. A este currículo vale propor fissuras ou, quem sabe, até um contra currículo: uma maneira de tensionar e modificar o já dado, provocando-o, fazendo-o mover-se e ajudando a manter viva a chama que o anima.

Quando concebem a ideia de mapa e da prática cartográfica, Deleuze e Guattari propõem que superemos a prática de acatar um real fabricado de antemão e por terceiros. O que interessa, justamente, é investir em novos e diferentes modos de fabricar nosso próprio real. Tal movimento vale para muitos dispositivos, inclusive o currículo, de modo que para cumprir sua função de nortear as práticas pedagógicas, ele deve ser “aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza (…)”. E concluem: “um mapa - ou um currículo, eu digo - é uma questão de performance”. Não de essência ou de imutabilidade, portanto.


Assim, trata-se, desde o início, de trazer o currículo para o jogo, para o calor das práticas, das vontades, dos corpos pensantes e dançantes de cada território - se pretendemos que sua função se mantenha ativa e relevante - a favor de um princípio vital do qual não podemos abrir mão.


Nos distanciamos da ideia de uma aplicabilidade pura e simples, para investir na questão das composições: tornar o currículo um registro mutante a serviço das vidas e das aprendizagens, nunca o contrário. Subvertê-lo e reinventá-lo a cada vez é nossa função e razão de nosso fazer.


Tal modo de usar converte-se, então, em um ou em muitos modos de fabricar que nos implicam direta e ativamente na tarefa de tecer no pequeno nossas práticas cotidianas, diante das quais abre-se uma dimensão ética fundamental. Se o uso canônico do currículo apenas aponta, comunica e documenta caminhos, um fazer contra curricular pede que botemos a mão na massa, produzindo torções e tensionamentos que privilegiem os movimentos, os interesses e os acontecimentos cotidianos. Qualquer fazer ultrapassa em intensidade e amplitude aquilo que o papel dá conta de registrar.


Criar frestas, aberturas e rasgos é a tarefa. Arejar fazeres, ampliar referências, tentar o inédito. Se o currículo canônico indica um norte, um contra currículo alarga horizontes, produz rizomas, atalhos e diferenças; se o currículo canônico legitima e autoriza a eficácia dos percursos já trilhados, um contra currículo investe nas experimentações e nas possibilidades inusitadas. Seu horizonte é processo e não as garantias de sucesso.


Aqui, o currículo vai encontrando seu bom lugar como documento que antes de ser causa é efeito de tudo o que pulsa na base. Afirmamos assim sua possibilidade cartográfica: um currículo que nos sirva só se faz em ato.


Já não estamos no campo dos usos, apenas, mas no lugar de fabricantes de contra currículos, que, a partir de suas dissonâncias e desvios nos permitem inventar outras possibilidades, dando aos documentos oficiais a vitalidade que tantas vezes lhes falta.


Eis uma dimensão fundamental da tarefa educativa: a possibilidade de cartografar as linhas de força que se compõem em cada grupo e fazem de nossas práticas uma singularidade. Aqui, não há percurso igual a outro nem a repetição burocrática do já previsto. O próprio ato de se repetir - se este for o caso - inclui em si a possibilidade de variar e de produzir diferença. Como disse Heráclito de Éfeso: “não podemos nunca entrar no mesmo rio, pois, como as águas, nós mesmos já somos outros”.


Que assim seja: partir do currículo para torná-lo outro. Ou ainda: partir o currículo, quebrá-lo em pedaços para recompô-lo a cada vez, recheá-lo de mil maneiras, tê-lo como um aliado de mutação. Currículo e planejamento já não nos servem como um passo-a-passo inequívoco e linear, mas, como bricolagem, da qual podemos extrair infinitas possibilidades de variação a cada encontro.


Voltando ao latim, nenhum caminho que se pretenda autêntico está traçado de antemão. Traçá-lo em ato e em consonância ao que em nós borbulha requer presença e vontade de aventura. Tê-lo como bússola, mas com disponibilidade para perder-se. Contra currículos, tal como a própria vida, são obras em aberto.


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