Da coragem de filosofar com o martelo
- Marta Picchioni
- 17 de mar. de 2022
- 3 min de leitura
O criador dos valores não é separável de um destruidor, de um criminoso e de um crítico: crítico dos valores estabelecidos, crítico dos valores reativos, crítico da baixeza.
Deleuze - Nietzsche e a filosofia
Um mundo em ruínas.
O mais comum é que nos lamentemos por tudo o que se esvai. Na companhia de Nietzsche, no entanto, aprendemos a nutrir apreço pelos processos de destruição, entendendo-os como condição necessária à criação de devires.

Essa dupla face torna-se um método de ação e produção de pensamento, onde o não torna-se condição para a afirmação do sim.
Mas de onde vem esse lamento, essa vontade de manter intacto um mundo que se esvai?
Na concepção tradicional da filosofia, importa fazer amizade com o conhecimento, re-conhecê-lo, como se ele estivesse desde sempre lá, esperando por nosso olhar para existir e para manifestar-se. Neste fazer, o que se busca são caminhos de acesso a essa verdade primordial, caminhos que quanto mais forem testados, repetidos e sistematizados, mais garantirão a veracidade da empreitada. O melhor sistema de pensamento é aquele que nos conduz ao conhecimento mais verdadeiro, capaz de representar o mundo tal qual ele é.
Mas, então, o que fazer diante de um mundo que rui? Como proceder diante do estremecimento do solo que se expande e desarranja tudo o que dávamos por sabido?
Uma primeira reação pode ser a vontade de conter o movimento, aprisioná-los nos velhos sistemas, contraindo o fluxo dos destroços e interrompendo seu processo. É a força reativa quem responde em nós a uma vontade de preservação.
Com Nietzsche, no entanto, os sistemas de verdade são todos fictícios, e não devemos empreender esforços no sentido de preservá-los ou decifrá-los. A única verdade da vida está em seu movimento de superação de si mesma, portanto, ao invés de buscarmos por verdades escamoteadas ou pela preservação dos mundos e de seus sistemas, investigaremos as condições de sua construção.
Quem em nós quer a verdade, senão aquele que duvida da vida?
A verdade como estrutura transcendente e idealizada, que busca explicar a vida fora do campo de forças onde ela acontece, deve ser combatida.
Seja com o martelo ou com dinamite, golpear sistemas de pensamento é parte importante de seu método ativo de destruição. A cada martelada produzida por sua crítica contumaz, vemos ruir os pilares das grandes estruturas civilizatórias, de modo que, ao final, nada fica em seu lugar, tudo se rearranja.
Assistimos à morte de Deus e à queda das religiões monoteístas, testemunhamos à caducagem do pensamento racionalizante e científico - sempre em busca de uma verdade mais verdadeira que a anterior - e a queda de tudo o que é humano, demasiado humano: a ruína do próprio conhecimento e da moral judaico-cristã.
Caem também as filosofias e toda sua altura transcendente; cai a arte e sua pretensão de representar o real; despencam os sistemas linguísticos com sua vontade de apropriação dos corpos e dos movimentos.
Diante desse campo minado, onde tudo vem abaixo, o que ganhamos de volta é o campo de superfície, agora liberado de toda estratificação e livre para os encontros imediatos. É a pista de dança o que encontramos ao final do processo, por onde podemos nos deslocar com a leveza necessária aos processos de criação.
É assim que, diante de um mundo em ruínas, ganhamos as condições de criar e de afirmar a vida e sua força, então enclausuradas pelos quartinhos e puxadinhos das instituições que só faziam trabalhar pela manutenção das formas instituídas.
É no limiar entre destruição e criação que se opera uma transvaloração. O valor se desloca da manutenção das formas para a afirmação da vontade de potência. Será ela a comandar e a direcionar o que fica e o que não para de retornar: a vontade de afirmar a vida em movimento e não mais de apequená-la.
Quando um mundo está em ruínas, outros estão imediatamente a brotar. A vida persevera e, por isso, não devemos lamentar.
Afirma-se, então, o acontecimento. Afirmam-se os encontros e o movimento, o ritmo e o pulso, os corpos que dançam na pista. Afirmam-se os deuses. Apolo, Dionísio e a criança que brinca. Afirma-se o riso e a alegria diante da própria autodestruição, condição de criação para o que em nós quer emergir, o além-homem, o além de nós, a invenção de outras maneiras de viver.
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