Da fabricação e do consumo de mundos
- Marta Picchioni
- 11 de mar. de 2022
- 3 min de leitura
O mundo ficou pequeno. Um lugar sério demais para se viver e inventar.
Disputas geopolíticas, crise climática, biotecnologia, engajamento compulsório nas causas da vez. São tantos os assuntos que nos tomam de assalto e diante dos quais é preciso se posicionar com agilidade e convicção, que, aos poucos, vamos perdendo o prumo e a capacidade de olhar para além da primeira camada enunciativa.

imagem: Adolfo Serra
Nos tornamos seres saturados de informação. Preenchidos por enunciados, consumidos e consumidores de palavras de ordem, que orbitam as redes e se apropriam de nossa capacidade de pensar, capturada por movimentos reativos e de repetição.
Nossas bocas, ao modo dos ventríloquos, produzem ecos ambulantes do que se diz por aí. Para cada assunto, uma tese inconteste. Nos tornamos comentadores de imagens que passam e se passam por dentro de nossas telas, como se fossem a própria vida, tornada imagem e narrativa.
Byung Chul Han nos alerta para o imperativo da transparência. Paul Preciado cria o conceito de farmacopornografia. Ambos apontam para uma nova modalidade de produção de sujeitos, fabricados em série, desnudos. Sujeitos devidamente anabolizados para performar.
Numa sociedade onde tudo se mostra, escancaram-se os parâmetros de uniformização. A linguagem torna-se enunciação mecânica e repetitiva, livre de toda a ambivalência. Aquilo a que nomeamos pensamento, resume-se ao cálculo de probabilidades, sem os intervalos necessários aos desvios, que efetivamente sustentam o ato de pensar como espaço de criação.
Quando foi que deixamos de criar mundos próprios para nos tornar comentadores de imagens que passam pela janela, enquanto perdemos o trem?
Por quanto tempo as crianças - ou o que resta delas após nossos crescentes esforços para lhes colonizar o futuro - ainda manterão viva sua capacidade de brincar com algum tipo de desenvoltura? Será que em nossa síndrome de excessos informativos não temos lhes roubado o tempo de inventar mundos?
Outro dia, observava um pequeno grupo que brincava, cercado por adultos distraídos. Seu gestos eram mudos, embora claramente interconectados. Eram as ações combinadas, sem que fosse preciso narrá-las, que davam a direção do que viria a seguir. Primeiro, cavar um grande buraco e preenchê-lo com folhas caídas. Depois, andar em duplas até a torneira e encher um balde d'água, dando à areia a consistência certa para ser moldada. Terminada a brincadeira na areia, começaram a correr, umas atrás das outras numa espécie de pega-pega-vale-tudo que só chegou ao fim quando seus corpos cansados deixaram de correr.
Não era, no entanto, o tipo de cansaço descrito por Byung -Chul Han e caracterizado pelo esvaziamento do sentido, produzido justamente pela repetição autômata de gestos importados. Aqui era o oposto: um cansaço que se experimenta como efeito da livre exploração dos movimentos, que agora pedia por repouso.
Inevitável pensar em nós, adultos, e por quais lugares temos deixado escoar nossas forças.
Distantes dessa conexão primeira, fomos e somos constantemente capturados pelos ruídos que pairam no ar e que precisam de nosso engajamento para ganhar corpo. Damos e somos matéria de circulação a isso que se diz por aí, e que, ao passar por nossos corpos, passa a dizer também de nós.
Assim, rapidamente nos deslocamos da produção de sentidos próprios à adesão a sentidos prontos, dos quais somos meio e captura. Existências povoadas por palavras de ordem que passam a compor nossos mundos.
Enquanto as crianças brincam sem ter a necessidade de seguir regras prévias ou de evitar repousos, nós clamamos por uma ordem maior, que não nos permita parar. Perdemos a capacidade de sustentar distâncias e silêncios, necessários à produção de sentidos interessantes.
Como diz Chul Han, em nome da transparência, da evidência e da visibilidade, cada pequeno lugar de indeterminação tem sido saqueado com a nossa anuência.
Assim, antes que uma bomba exploda e traga seus resíduos tóxicos para cada porosidade do mundo, nós já teremos implodido por nossa própria produção de toxicidade, sucumbidos a isso que se diz por aí, isso que se diz em nós e que não paramos de repetir. Isso que nos tornamos e que já não sabemos como escapar.
Olhai as crianças! - nos dirá Zaratustra. Aprendei com elas a ouvir seus corpos e não os comentadores. Compartilhai de sua capacidade plena de entregar-se ao processo, sem medo de relançar-se no tabuleiro da vida.
Comments