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Da força de um tropeço

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 7 de jun. de 2022
  • 3 min de leitura

Tudo estava no lugar nos acontecimentos de minha vida antes que eu os fizesse meus;

e vivê-Ios e me ver tentado a me igualar a eles como se eles não devessem

ter senão de mim

o que eles têm de melhor e de perfeito".

Joe Bousquet



Às vezes a vida nos prega uma peça. Às vezes, um acontecimento nos surpreende e nos pega pelo pé, nos tira o chão, nos faz estremecer, nos desestabiliza. Às vezes, uma porta se fecha e o dia, que se anunciava ensolarado, nubla-se com chegada de uma frente fria.

Às vezes, acontece.

imagem: Charlotte Chauvin



O acontecimento, no entanto, não é da ordem das substâncias palpáveis nem das coisas que podem ser nomeadas, analisadas ou mesmo representadas enquanto acontecem. Acontecimentos são incorporais, fluxos que cortam o tempo e o espaço e extrapolam em muito nosso universo semiótico e linguístico.


Por sua própria natureza, os acontecimentos produzem realidade e geram efeitos em nossos corpos e em todos os outros ao redor, afinal, (...)“Qual guerra não é assunto privado, inversamente qual ferimento não é de guerra e oriundo da sociedade inteira? ".


Com tal provocação Deleuze nos dá pistas de que é impossível separar o que num acontecimento é do âmbito da vida privada da parte que diz respeito ao coletivo. No acontecimento, tudo é singular e por isso coletivo e privado, particular e geral ao mesmo tempo. O que difere são modos como cada corpo se comporá neste encontro, onde o produto de cada ação ressoará também de maneira diversa por todo o campo de forças.


É assim que mesmo sem antever, o acontecimento nos pega pelo pé, revelando a fragilidade de nossos planos e desejos intencionais. É justamente quando as expectativas não se cumprem que somos convocados a criar ou acionar forças para nascer e morrer no acontecimento ou, como diz Bousquet, "tornar-se filho de seus próprios acontecimentos e por aí renascer.”


Tal manobra, no entanto, requer a capacidade de não julgar a vida como inadequada pela simples constatação de que ela não corresponde às nossas ideações. Enxergar o acontecimento como injusto ou imerecido - afinal, a culpa é sempre de alguém - é o que abre terreno para a instauração do ressentimento em nós.


Como diz Deleuze, é preciso estar à altura das próprias feridas, tornar-se digno daquilo que nos acontece. A diferença entre a disposição ressentida e a criadora é que nos abre campo para instaurar marcas de uma grande doença ou, ao contrário, fluxos de uma grande saúde.

Doença e saúde entendidas aqui como a capacidade de apequenar ou alargar nossas maneiras de estar e nos compor na existência.


No campo da doença, fazemos do fluxo uma substância, calcificando o acontecimento e tornando pedra o que poderia ser passagem. No campo de uma grande saúde, o acontecimento torna-se meio de composição, e mesmo que ele nos marque com sua passagem, não nos entulha nem se acumula em nós, pois nos tornamos capazes de extrair dele linhas de força e de diferenciação.


Em suma: não rechaçar o acontecimento, não negá-lo nem julgá-lo mas, de modo surpreendente, desejá-lo!


Se tal disposição não significa necessariamente querer aquilo que acontece, como a guerra, o ferimento ou mesmo a morte, desejar o acontecimento significa compreender em toda ferida uma necessidade, ao ponto de desejar “alguma coisa no que acontece” e tornar-se merecedor do presente.


Contraefetuação e Amor fati!


Dizer sim ao acontecimento é promover o deslocamento de uma disposição passiva e acidental, para outra, onde se torna possível extrair e selecionar do tropeço uma força. É só nesta manobra que seu sentido poderá ser extraído e criado, posto que nunca esteve dado.





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© 2022 Marta Picchioni

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