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Da morte do diálogo à judicialização da vida

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 25 de mar. de 2021
  • 7 min de leitura

Atualizado: 25 de mar. de 2021

Esta semana, recebi de uma amiga uma notícia preocupante e bastante sintomática de nossos tempos, em que as relações estabelecidas entre família e escola ganham contornos jurídicos, numa encenação tipicamente litigiosa, onde o interesse entre as partes passa a ser arbitrado por instâncias exteriores à própria relação.



Trata-se do caso específico de uma mãe que veio a público compartilhar a situação de ter sido denunciada ao Ministério Público, pela escola onde estudam seus filhos, pelo mau desempenho acadêmico do mais velho no ensino remoto, uma atitude que nos parece desproporcional e talvez descabida por parte da instituição de ensino, evidenciando certa inabilidade para conduzir situações que, embora fujam à norma, são cada vez mais comuns nas relações entre escola e família (ver reportagem aqui).


Segundo a escola, a mãe não estaria dando o suporte necessário para que o estudante se engajasse como o esperado nas atividades escolares, o que deporia contra sua própria condição de mãe e justificaria a intervenção do Estado.


O caso é emblemático por jogar luz no modo cada vez mais utilizado de resolução de conflitos entre escolas e famílias: ao invés de apostar no diálogo como instrumento de entendimento e resolução mínima de conflitos, opta-se pela saída denuncista e policialesca - neste caso, tomada pela escola, mas em tantos outros como uma iniciativa das famílias - onde as relações passam a ser mediadas por advogados, tribunais, juízes, processos e muito ressentimento.


Diante da escolha pelo caminho litigioso, o engajamento do estudante nas aulas remotas - fator que supostamente motivou a denúncia - passa a ser a última das prioridades em jogo. Vale dizer que a questão do engajamento é eminentemente pedagógica e uma das regras básicas da escola - embora pouco sustentada nos dias que correm - é que aquele que não frequenta as aulas nem realiza as atividades propostas é reprovado, o que não significa a imposição arbitrária de uma penalidade exterior ao contexto escolar, mas, ao contrário, uma consequência factível e de acordo com as regras do próprio jogo institucional.


Este é, portanto, mais um triste episódio, onde família e escola colocam-se como instâncias apartadas e pouco disponíveis à escuta - condição fundamental para o exercício da tarefa educativa. O que está em cena é muito mais o embate entre as partes, que terminará com a sobreposição de uma sobre a outra, do que o investimento na criação conjunta de linhas de composição que favoreçam, no fim das contas, à aprendizagem e o engajamento de quem seria o principal interessado: o filho-estudante sob sua responsabilidade.


Pensando agora de modo genérico, numa espécie de zoom às avessas, muitas foram as escolas que se depararam com pedidos de desconto nas mensalidades, na passagem do ensino presencial ao remoto, por conta da pandemia. Nesta passagem, não apenas a questão financeira foi posta na balança como também as estratégias para engajar os estudantes no ensino à distância, já que muitas vezes não havia um vínculo anterior entre o grupo e os novos professores.


A adaptação à modalidade remota e a súbita sobreposição dos universos escolar e doméstico, exacerbou uma série de estranhamentos já existentes entre escolas e famílias, desde a falta de clareza dos papéis de cada uma, até os limites dessa atuação, muitas vezes, relegando aos protagonistas da trama - os estudantes - um papel secundário e de margem. De um lado, famílias singulares e suas demandas específicas por mais ou menos conteúdo, mais ou menos tempo de tela, etc; de outro, as escolas, esforçando-se por atender as solicitações antagônicas da exigente clientela, sem deixar de manter o mínimo esperado para o “padrão pedagógico”, sempre uma equação de difícil resolução.


Neste panorama, foi muito comum que demandas relativas às necessidades de cada família fossem tratadas como um direito de quem está em dia com as mensalidades, numa autêntica relação mercadológica que passou a atravessar, sem nenhum pudor, o universo da educação entre escolas e famílias.


Acontece que, mesmo em se tratando de uma escola privada, a educação não é um produto que se adquira de forma inequívoca pelo fato das mensalidades estarem em dia. Tampouco as relações entre escola e família se assemelham àquela entre clientes e prestador de serviço, pois, para funcionar, é preciso que seja, antes, uma relação de confiança e de parceria, condição sem qual não é possível que a tal da educação encontre solo fértil para prosperar.

Neste encontro tenso e intenso, é preciso que haja um espaço de escuta às questões singulares de cada família, o que não significa, no entanto, que suas demandas serão atendidas de forma customizada, pois nem sempre isso será possível ou mesmo desejável, uma vez que a educação escolar acontece em um espaço que é institucional e coletivo, por definição.


Ainda neste terreno, é preciso não perder de vista que o processo educativo só pode acontecer se contar com a implicação direta dos principais envolvidos: os estudantes que, em alguns casos, recusam-se a aderir às regras do jogo, mesmo que delas já façam parte. Resta então a pergunta: o que fazer?


Se de um lado, é preciso pensar em maneiras de convergir esforços em favor dos estudantes, de outro, é absolutamente necessário convocar sua própria implicação, pois, pouco importa que escola e família se desdobrem em mil acordos e reuniões em seu nome, se o principal envolvido se exime de exercer seu papel.


Um argumento bastante utilizado pelas famílias quando percebem que o filho não se engaja nas atividades escolares é o fato delas serem vistas como chatas ou pouco motivadoras, ou mesmo por não estarem à altura de suas “altas habilidades”. Mas se formos pesquisar a fundo, encontraremos o mesmo tipo de situação no universo doméstico: seu filho acha chato dormir cedo? Não gosta de comer verduras? Reclama para sair do computador e arrumar o quarto? Resiste em passear com o cachorro?


Pois bem, a chatice não é privilégio da escola. Muitas coisas na vida são absolutamente chatas e a escola não poderia passar ilesa. Entre o chato e o necessário, porém, nem tudo poderá ser negociado, de modo que é preciso filtrar bem este tipo de argumento.


Por outro lado, sabemos que, sim, a escola muitas vezes insiste em oferecer atividades massificadas e desinteressantes, quando poderia propor formatos mais interativos e instigantes acerca de um conteúdo, ainda mais contando com a tecnologia a seu favor. Ainda assim, o melhor caminho não parece ser o de justificar um erro com outro e, nessa medida, validar o comportamento pouco comprometido de nossos filhos, apoiando-se na falta de sentido do que propõe a escola, certamente se revelará uma grande emboscada.


O sentido do que se faz na escola não está dado de antemão e deve ser construído coletiva e cotidianamente. É preciso que ela faça o melhor uso possível do momento presente para dinamizar suas práticas e nada melhor para isso do que se abrir a escuta do que têm a lhes dizer os próprios estudantes.

Aqui em casa, observando as aulas remotas de minha filha, vejo que o conteúdo trabalhado nos livros didáticos foi absolutamente todo transposto ao modelo digital e, assim, as propostas seguem o modo padrão e linear de ensino, sempre pautado por textos curtos, e onde o maior desafio é a busca por respostas simplificadas. O tom predominante é o da valorização do acerto, e não o incentivo à formulação de boas perguntas que dariam margem a processos de investigação. A maioria das atividades avaliativas são de múltipla escolha, sobre temas trabalhados de modo aligeirado e sem grandes pesquisas - embora o trabalho por projetos seja anunciado no discurso como um marcador pedagógico da instituição.


A escola, mesmo operando no modo digital, o faz da maneira tradicional, aproveitando pouco os recursos disponíveis para pesquisa e interação. De alguma maneira, porém, e a despeito de suas intenções, ela acaba por fornecer o kit básico de ferramentas para que os estudantes se engajem, por conta própria, em temáticas de seu interesse para muito além do que propõe o currículo oficial.


Aqui, por exemplo, vejo uma estudante capaz de construir um sentido próprio às tarefas passadas pela escola, como contabilizar o número de acertos nas questões de múltipla escolha, criando uma espécie de competição consigo mesma. Vejo-a fazendo uso de ferramentas digitais - como a procreate, especializada em desenhos - que em nada se relacionam aos conteúdos escolares, mas que fazem parte de um certo letramento digital possibilitado pelo ensino remoto.


Vejo-a, pesquisando experiências científicas e receitas culinárias pela internet que, depois, serão testadas, com algumas variáveis, na cozinha de casa, possibilitando o levantamento de hipóteses, a execução de procedimentos e a observação dos resultados, registrados com fotos e pequenos vídeos, enviados à pessoas da família.


Outra iniciativa que chamou a atenção foi marcar com alguns colegas da turma de assistirem a um anime juntos e depois discutirem as impressões de cada um, o que acabou não acontecendo, mas talvez ainda venha a se concretizar.


O que vejo, portanto, são estudantes mobilizados e aprendendo. Fazem uso das ferramentas digitais, às quais dominam cada vez melhor, para investigar assuntos de seu interesse, compartilhar descobertas e opiniões, socializar conteúdos e, por fim, aprenderem a aprender, de maneira autônoma e paralela à escola, ainda que conectados à sua rede de contatos.


É importante ter em mente que não se trata de nenhum tipo de “alta habilidade” que escape aos fazeres escolares, mas sim, de um outro modo de se relacionar com o mundo que veio para ficar e que a escola deveria aproveitar muito melhor do que tem feito. A despeito disso, ainda existirão as “coisas chatas”, na escola e fora dela, às quais continuaremos a ensinar e a aprender, como, por exemplo, arrumar a bagunça das atividades culinárias.


Ao fim e ao cabo, temos muito a pensar e mais ainda a pôr em prática nesses tempos de mudanças e de nervos à flor da pele. Que escolas e famílias insistam em ocupar seu lugar de parceria e responsabilidade, sem ceder a ações denuncistas e acusatórias que em nada contribuem à tarefa educativa que compete a todos nós.


Vale afirmar que o interesse pelos estudos não se impõe à revelia, muito menos judicialmente. Nessa medida, precisa ser sustentado por uma rede de relações da qual fazem parte escola, família e estudantes. Estes, mais uma vez, não devem ser vistos como destinatários passivos de um programa pedagógico que pouco dialoga com seu tempo, mas ao contrário, como agentes ativos de co-construção de práticas, sentidos e experimentações, que podem contribuir com a emergência de algo novo e interessante aos fazeres escolares há tempos cristalizados.




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