Da potência de criar mundos à data comemorativa: que usos temos feito da criança que há em nós?
- Marta Picchioni
- 14 de out. de 2021
- 4 min de leitura
Dia das crianças.
Dos sentidos inéditos e revolucionários e possam vir a emergir de cada criança que vem ao mundo, com sua potência de criação, esbarramos, muitas vezes, na maquinaria consumista e autômata que pretende girar a roda da economia apoiando-se nas datas comemorativas.

Natal, dia das mães, dos pais, dos avós, das crianças, etc e tal. As datas comemorativas proliferaram-se com o passar dos anos e dos infinitos nichos que o mercado é capaz de criar, de modo que não podemos nos furtar da questão que se coloca para jogo: afinal, o que exatamente celebramos nestes dias e por que o fazemos? E, ainda, como temos tratado das infâncias na cultura do consumo?
O dia dedicado à comemoração das crianças foi criado em 1924 por um deputado chamado Galdino do Valle Filho - e oficializado pelo então presidente do Brasil, Arthur Bernardes. Ao que tudo indica, no início do século 20, as crianças eram vistas como o futuro da nação, daí a ideia de lhe assegurar uma data no calendário, ainda que nem todos os direitos lhes fosse assegurados na prática.
O fato da data ter passado quase despercebida por cerca de quatro décadas, nos dá pistas do lugar periférico destinado às crianças e às infâncias nas práticas cotidianas, mostrando que a criação de uma data específica não basta para que se produza um olhar voltado às crianças.
Tal realidade, no entanto, veio a se modificar no início dos anos 1960. Foi quando as empresas Johnson & Johnson e Estrela, fabricante de brinquedos, se associaram para lançar uma promoção intitulada Semana do Bebê Robusto. A ideia era aproveitar a data que já existia para impulsionar as vendas de produtos voltados às crianças, a essa altura, transformadas em público consumidor.
Com este nicho de mercado em expansão por aqui, a iniciativa foi um sucesso, o que acabou por atrair, ano a ano, outros grupos de empresas e empresários. Foi assim que não só o dia, como a semana das crianças, se consolidou, tornando-se uma das principais datas comerciais do calendário brasileiro.
Há ainda outra relação peculiar no que se refere à escolha do dia 12 de outubro: tal dia é considerado o do "descobrimento da América”, por Cristóvão Colombo, e esta última - a América - considerada o continente das crianças, já que tanto elas como os povos originários, eram vistos como selvagens pelos colonizadores/educadores da época.
Tomando como base de análise esses dois marcadores, vemos que a comemoração do dia das crianças traz reflexões importantes para que possamos questionar tradições e os automatismos de tempos passados. Trata-se, afinal, de celebrar as crianças e seus modos singulares de estar no mundo, modificando o entorno a partir deles ou, na contramão deste caminho, de promover-lhes, desde o início e por todos os lados, um processo de aculturação que tem em vista assegurar o tal futuro projetado de nação?
E ainda, se não nos é possível optar definitivamente entre um ou outro caminho, que fiquemos com essa questão por mais tempo, entendendo nossas cumplicidades e as implicações micro e macro sociais diante de um ou outro percurso.
Como bem sabemos, dar aos pequenos brinquedos de presente assumiu lugar central nos modos como comemoramos as infâncias em nossa cultura. O presente aqui torna-se símbolo de afeto e status de modo que, aos poucos, passam a tomar o lugar das brincadeiras em si - já que possuir brinquedos não garante que a ação de brincar aconteça.
Assim, do nascimento da data comemorativa aos dias de hoje, mais do que comemorar as crianças e seus modos de estarem no mundo, o que fazemos é introduzi-las em um mundo já conhecido e pautado pelo consumo, seja de brinquedos, de informações, de amigos e de até de si mesmo. Como crianças iniciadas, elas tornam-se participantes ativas de uma cena que elege, desde cedo, objetos de desejo, programas específicos, modos de vestir e se alimentar, de falar, de desejar.
Se não se trata de criar um universo paralelo ao mundo adulto - como se as crianças pudessem existir numa espécie de bolha protetora - é preciso que pensemos o que e como estamos celebrando as infâncias e se temos dado lugar para que as crianças possam afirmar seus modos de ser e pensar de acordo com sua própria lógica. Neste cenário, é interessante que possamos suspender os automatismos para olhar mais demoradamente ao que fazem as crianças e, assim, potencializar seus atos criadores.
Afinal, que usos temos feito dos dias das crianças e que lugar temos dado às infâncias de todos os dias? Como temos escolhido partilhar a vida junto dos mais novos, e será que o ideário civilizatório é ainda o grande regente de nossas práticas cotidianas?
Se há um dia das crianças é preciso que pensemos nos sentidos que podemos dar a esta data. Talvez este possa ser um dia para olharmos para as crianças à nossa volta em silêncio e aprendermos com elas novas maneiras de estar e de se compor com o mundo ao redor.
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