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Das assombrações

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 23 de ago. de 2023
  • 2 min de leitura

Medo do futuro, medo do escuro, medo do desconhecido. Desconhecer-se ao ouvir as vozes que gritam ou sussurram de dentro.


O que temos feito daquilo que nos assombra?



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O medo abstrato pode tomar diferentes formas, com capacidade de materializar este temido afeto sob a forma de figura, situação ou objeto. É quando a sensação de estar sob risco eminente nos toma de assalto, tornando-se forte o suficiente para capturar toda a vida, que passa a orbitar a seu redor.


Não fale com estranhos. A palavra de ordem com que somos fabricados desde o berço é a própria matéria prima de nossas assombrações, na medida em que serve tijolo para a construção das bordas imaginárias, que teriam como função separar, de uma vez por todas, dentro e fora, o estranho do familiar.


Este estranho-desconhecido-insurgente é, definitivamente, um lugar a ser temido e que convém não frequentar. Assombrados pela possibilidade de flertar com o lado de lá, passamos a imaginá-lo, habitando-o com nossas próprias fantasias e projeções.


Sob inúmeras roupagens os medos têm, no entanto, um traço em comum: o fato de centrifugar nossa atenção, operando como um vórtice, buraco negro que a tudo devora e desintegra. Diante disso, há uma clínica que propõe que o evitemos, como se a vida pudesse, afinal, ser editada e filtrada, como se tem feito com os posts do Instagram.


Aprendemos com os filmes de terror, no entanto, que para além dos efeitos hipnóticos que este afeto nos causa, há sempre um agenciamento, uma engrenagem em causa, que o sustenta e anima. Para cada demônio encenado, quilos de maquiagem, torções corporais e a magia performática dos efeitos especiais.


Assim, embora sempre singular, o medo já é efeito de uma engrenagem social reativa, que nos ensina a temer e a evitar todo o tipo de diferença, seja as que se apresentam no outro, seja as que se passam em nosso próprio corpo.


A uma clínica da diferença, portanto, interessa exercitar o inverso: investir em zonas de composição com todo tipo de estranhamento, perfurando as fronteiras - ao invés de fortalecê-las - para que o estranho familiar possa transitar livremente, entre lá e cá. É o que acontece em O sexto sentido, filme de 1999, dirigido por Manoj Nelliattu Shyamalan. Nele, um jovem personagem, amedrontado por imagens de gente morta, é incentivado por seu psiquiatra - também ele morto, o que só viremos a saber ao final do filme - a conversar com essas aparições. Pois, quanto mais o menino insiste em manter seus mortos à distância, mais eles gritam e fazem caretas, insistindo em se fazer ouvir.


Compor mundos com seus fantasmas torna-se, então, o único caminho viável para sair do estado congelado a que o medo nos lança. Curiosamente, trata-se, como propõem os filmes de terror, de desobedecer ao imperativo com que somos nutridos desde o berço. Sim, é preciso falar com estranhos e ouvir suas vozes, é preciso amigar-se de nossos fantasmas. Quem sabe o que eles têm a nos dizer?


Às sombras-em-ação, feixes de luz! É na composição com a diferença que o medo se dissipa, quando já não temos necessidade de mantê-lo longe, como se fosse possível nos blindar do imponderável da vida.


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© 2022 Marta Picchioni

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