De olho no topo: a ansiedade em uma perspectiva esquizoanalítica
- Marta Picchioni
- 4 de jul. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 12 de jul. de 2022
Por: Marta Picchioni e Henrique Gluck
Vivemos acelerados, ansiosos pela perspectiva do que virá a acontecer: a próxima meta, o auge de nosso propósito, o topo. Nossos corpos se movimentam inquietos. Ficar parado certamente significa perder alguma coisa, ficar para trás, obsoletos.

imagem: Barbara Licha
O imperativo da subjetividade empreendedora, seja no âmbito dos regimes semióticos seja nos regimes de corpo, produz em nós o medo da insuficiência. Diante de um fluxo produtivo que não para de passar, é preciso seguir em frente e estar à altura. E, no entanto, responder prontamente às demandas que nos convocam ajuda a dar forma a um acontecimento social que ganhou status e nome próprio: ansiedade.
Poucos cliques no google e logo somos direcionados a dezenas de artigos, vídeos e notícias acerca da epidemia de ansiedade que nos acomete. Pessoas diagnosticadas com ansiedade sofrem de preocupações excessivas sobre atividades ou eventos específicos, têm dificuldade de controlar seus pensamentos, que persistem por dias ou até meses. Tais preocupações se associam a certos sintomas físicos como agitação, nervosismo, cansaço, dificuldade de concentração, irritabilidade e alterações do sono.
Diante disso que se manifesta em nós como efeito de forças de uma época, algumas teorias a tem concebido como sintoma de um processo bioquímico, que afeta o pensamento e o corpo daqueles que acomete; enquanto outras investem na busca de uma origem psíquica, investigando o surgimento de patologias prévias ou a existência de situações traumáticas, desencadeantes de memórias de marcas, desde as primeiras relações objetais até os sintomas presentes.
De uma perspectiva esquizoanalítica, ainda que se leve em conta as manifestações bioquímicas e os eventos traumáticos do passado - já que ambos são acontecimentos que se atualizam no corpo e no tempo presente - compreendemos a manifestação ansiosa como efeito de um campo de forças que é necessariamente composto por relações macro e micropolíticas que, ao se encontrarem em um plano de superfície comum, nos atravessam.
Considerar o contexto como um plano composto por forças em relações, no entanto, não significa desimplicar o sujeito daquilo que lhe acomete. Ao contrário. É preciso empreender uma cartografia do desejo para perceber de que maneira nos engajamos na produção desses mesmos sintomas que nos separam de nossas forças.
Para uma clínica que se compromete com a geração de uma vida intensiva e com a produção da diferença, não basta mapear origens e identificar a presença de certo número de sintomas que, ao serem medicalizados, trariam novamente a paz e a harmonia à subjetividade em estado ansioso. É preciso incidir e cartografar o coração desta máquina produtiva, tanto da perspectiva das investidas sociais, como das cumplicidades que estabelecemos com o estreitamento de nossas maneiras de sentir, pensar e agir sobre o campo em que existimos.
O que em nós deseja os arranjos políticos e sociais que passamos a reproduzir? O que em nós busca corresponder aos anseios de sucesso e que outros arranjos seriam possíveis, do ponto de vista de um desejo que não se orienta pela sensação de insuficiência?
Aqui é preciso lembrar que, se as forças molares e macropolíticas se exercem sobre nós, as mesmas também são movidas e sustentadas por nosso próprio desejo de pertencer e de lhes corresponder às expectativas. Assim, uma clínica da diferença volta seu olhar sobre as maneiras como temos desejado as forças que nos enfraquecem. Um desejo usurpado em nome de quê?
Cartografar os modos como investimos em nossas relações cotidianas nos dá pistas de como nós mesmos ajudamos a produzir um campo social onde o desejo se objetifica e passa a operar sob o registro da finalidade - sempre em busca de um objeto perdido que, quando encontrado, se revela incapaz de nos preencher.
O buraco é mais embaixo.
Ao desejarmos corresponder à forma de um eu-ideal, damos corpo à produção de uma monocultura subjetiva que é produzida em série e ao modo capitalístico. O que importa é pertencer e nos movimentar ao ritmo imposto pela máquina social, que já não diz respeito somente aos usos e ao consumo dos objetos que fabrica, mas se estende à objetificação de toda a existência.
A subjetividade pré-ocupada antecipa a presença de um futuro apocalíptico, orientando-se pelos afetos do medo ou da esperança, ambos afetos passivos, que nos separam de nossa potência de agir e de criar realidade hoje. Ficamos, então, à mercê da densa fumaça que nos sobrevoa e que não nos permite dormir no ponto: é preciso estar on 24 x 7 - produzir até mesmo enquanto sonhamos.
A desconstrução deste modo de nos compor com o campo presente passa, necessariamente, pela criação de outros usos para nossos afetos, usos desviantes e mais lentos, capazes de gerar novas linhas de composição, estranhas à finalidade do topo.
Como não antecipar demandas que sequer chegaram a ser enunciadas? Como não dar corpo ao fantasma do apocalipse? Como liberar o desejo para encontrar caminhos que não compactuem de antemão com as ideias de sucesso e felicidade?
De uma perspectiva esquizoanalítica é fundamental recolocar o problema da ansiedade no mesmo campo de forças de onde ele emerge, para daí extrairmos novas linhas de efetuação. Tal clínica se torna uma aliada no processo de agir e modificar o real, na medida em que ativa nossas forças produtivas.
Diante disso, o afeto ansioso é capaz de se dissolver, já em que o desejo passa a se ocupar das intensidades presentes. Aqui, já não necessita pré-ocupar-se de narrativas comprometidas com a produção de insuficiência: seu devir está por ser fabricado a seu modo e a seu tempo.
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