top of page
Buscar

Diferença como defasagem?

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 31 de out. de 2020
  • 3 min de leitura

Atualizado: 18 de mar. de 2021

Enquanto escolhia o nome deste site, pesquisava sobre as diferentes acepções para a palavra hiato. Encontrei lacuna, brecha, intervalo, oco, e também falha e falta. Quando associado ao contexto educativo, deparei-me ainda com uma ideia que soou curiosa: o hiato como defasagem.



Não nego que fiquei surpresa, apesar de saber que o campo da linguagem carrega ambiguidades semânticas próprias e que os significados se constroem a partir de seus variados usos e contextos. Embora possamos entender, de fato, um hiato como falta ou como aquilo que falha, aqui, trata-se exatamente da proposição oposta.


Se o hiato pode ser visto como um degrau, um espaçamento ou vão, isso não significa que ele deva ou precise ser preenchido. O hiato como um espaço, não apenas geográfico mas também de tempo, pode muito bem significar a fissura necessária de onde novas relações com o saber e com o entorno possam emanar e serem construídas. Pois, em um campo onde cada pequena fresta precisa ser logo ocupada e tamponada, nada de novo pode emergir.


Neste caso, é curioso constatar o quanto os discursos e muitas das práticas educativas em vigência podem ter dificuldades para lidar com o terreno irregular e heterogêneo que é, por definição, o lugar da educação. Diante do incômodo por se ver diante de assimetrias, curvas ou linhas abertas, o primeiro movimento tende a ser caminhar numa direção unívoca e que se pretende eficaz.


No entanto, preencher hiatos como se pavimenta um calçamento, em busca de uma homogeneidade forjada, onde todos seriam contemplados da mesma forma e ao mesmo tempo é, de largada, uma tentativa fadada ao fracasso. A pavimentação do terreno é mais interessante se considerarmos as possibilidades estéticas dos mosaicos ou dos paralelepípedos. Ou, ainda, em casos mais afortunados, de manter um chão de terra.

A homogeneidade da mesmice não é outra coisa senão uma das narrativas que repetimos para nós mesmos, mais por hábito que por observação. A natureza é toda ela feita de diferença. Por que, então, lutar pela manutenção de uma educação padronizante e achatada?


O hiato, como possibilidade para a emergência do novo é, sem dúvida, muito mais interessante do que seu entendimento como um lugar de defasagem, onde toda a diferença é vista como falta e negatividade.


Ao contrário dessa perspectiva, é no campo da diferença que as relações se tensionam e se produzem como alteridade. Do contrário, sobrevive apenas o ilusório marasmo de que as coisas caminham a contento e como sempre caminharam.


Podemos nos perguntar, então, acerca das dificuldade reais que vivem as crianças que de fato não acompanham o conteúdo de sua turma ou não aprenderam, ainda, os conteúdos esperados para sua idade, seu ano ou sua turma. Para além de problematizarmos as divisões por série, faixa etária e escolha curricular por ano letivo, podemos analisar a situação sob duas óticas. Na primeira, uma criança teria, de fato, dificuldades em relação ao conteúdo e não acompanharia o ritmo da maioria de seus colegas. Nesses casos, é sabido e esperado que ela deva avançar em relação a ela mesma nos conteúdos que serão escolhidos de maneira singular, pelos agentes responsáveis por propor um plano de aprendizagem. Portanto aqui, não se trata se preencher buracos, mas de pavimentar o caminho para possibilitar uma boa caminhada.


Na outra ponta, teríamos uma criança que não apresenta dificuldades, mas que, por algum motivo, não acompanha o ritmo do que seria o esperado para ela. Neste segundo panorama, talvez seja o caso de investir em estratégias variadas de estudo e pesquisa, sabendo que as formas de aprender são muitas, assim como os interesses, as facilidades e os caminhos para que se possa avançar na construção de conhecimento.


Em ambos os casos, a implicação do próprio aluno em seu processo é condição fundamental para que ele aconteça. Apesar dos apoios, não é possível terceirizar este movimento.


Os hiatos, portanto, funcionam muito mais como potencializadores a favor do aprendizado do que como lugar de falta a ser preenchido, remendado ou tamponado.


Que os espaços educativos possam compactuar muito mais com a lógica do hiato como andaime e invenção, do que como justificativa para práticas segregatórias. Que estejam a serviço de uma escola em que todos possam contribuir a partir de seus lugares de diferença.



Comments


© 2022 Marta Picchioni

bottom of page