Do esquecimento
- Marta Picchioni
- 7 de abr. de 2022
- 2 min de leitura
Esquecimento é o alisamento do passado,
igual ao que as ondas do mar fazem
com a areia da praia
durante a noite.
Rubem Alves
Como diz a canção: recordar é viver. Reviver. Mas talvez o que aconteça durante as recordações seja apenas a possibilidade de (re)viver por meio de imagens: projeções sobre um passado que passou, mas não deixa de se fazer presente.

imagem: Leonilson
Vivemos um tempo em que o registro das vidas tornou-se uma espécie de obsessão. Tal registro se sobrepõe às experiências vividas, como se lhes correspondesse, mas é fácil perceber a diferença: enquanto a vida acontece sem cortes e em fluxo contínuo, os registros sobre ela se atém à produção de marcas que a editam e formatam, tornando-a performance.
E por que nos dedicamos com tanto afinco à fabricação de registros do que fomos e do que fizemos? Por que construímos uma persona originária da qual supostamente não deveríamos nos distanciar? Talvez, por procurarmos uma espécie de garantia de perpetuação: que o tempo passe, mas não para nós; que o mundo mude, mas que possamos permanecer os mesmos.
Você tem medo de se sentir à deriva?
É porque mudar dói. E na sociedade que hipervaloriza os estados e que conta com os operadores de transparência e visibilidade para nos incitar a mostrar e a contar tudo o que em nós se passa, sequestra-se o lugar da impermanência, da descontinuidade, do apagamento e da quietude.
Esquecedores de mundos e criadores de si. Como o encontro das ondas com a areia da praia, estes afirmam a importância de se mover praticando a arte da invisibilidade e da discrição. Na distância e no silêncio de seus passos, a vida se faz e desfaz quantas vezes for necessário, e sem a preocupação de performar.
Nietzsche nos ensina: o esquecimento, ao contrário de uma falha ou de uma displicência, é uma faculdade ativa fundamental para a criação de futuros. Para aqueles a quem não é dada a possibilidade de esquecer(-se), restará ater-se ao que já foi: ressentir e ressentir(-se) da vida, a cada vez.
A mudança como perdição e desencaixe faz com que voltemos aos sulcos do passado, ativando-os como porto seguro e lugar de ancoragem. Então, mais uma vez, Nietzsche nos ensina: uma grande saúde está justamente na possibilidade de regeneração, sempre presente quando somos capazes de constatar que já não coincidimos com as sombras do que fomos um dia.
Por alguma manobra estranha de nossa condição de humanos, demasiado humanos, insistimos em forjar memórias e em ressenti-las, congelando a vida num suposto instante onde haveria faíscas de felicidade. Assim, o homem que se ressente não age nem reage: ele empaca diante do peso de sua própria imagem perdida.
Não só o ressentimento se configura como a grande doença da humanidade, como cada doença em si materializa no corpo um estado de ressentimento em nós. É preciso, então, convocar uma certa sabedoria marítima e vegetal, que não para de fluir e de esquecer-se de como foi um dia.
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