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Do lugar de fala à formação de trincheiras

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 18 de fev. de 2021
  • 3 min de leitura

Atualizado: 15 de mar. de 2021

Lugar de fala: conceito que surge para garantir voz e visibilidade àqueles que costumavam ter pouco espaço nas pautas coletivas, encenadas no espaço público, mas que rapidamente torna-se um território bem demarcado onde estranhos ou curiosos não são bem vindos.



As ideias de lugar, espaço e território têm muito em comum. Todas elas falam da nossa necessidade de alojar e de pertencer, de criar raízes e proliferar. No entanto, talvez desconsiderem outra vertente do campo das necessidades, tão importante quanto a de fixar, que diz respeito à transitoriedade, ao movimento e a desterritorialização.


Em princípio, a ideia de lugar de fala se refere ao lugar que cada um de nós ocupa no mundo e a partir do qual experimentamos existir. Será por meio e a partir deste corpo material e histórico que habitamos, que receberemos e emitiremos influências a todos aqueles com quem nos relacionamos.


No entanto, a própria ideia de que haja um lugar originário e individualizado pode ser problematizada. Habitamos o mesmo corpo-casa do princípio ao fim? E o que é este corpo senão um substrato de trocas e de encontro com os outros corpos, seja por meio da fala, dos gestos ou pelo modo como percebemos as linhas de transversalidade que nos constituem?


Este corpo que habitamos é poroso e composto por muitas influências e variáveis que o sustentam. É um corpo feito de carne e de encontros com o que vem de fora e também com suas intensidades próprias.


Acontece que, nos dias de correm, tem havido um desejo por territorializar esse lugar tornando-o rígido e bem marcado, impermeável à presença do outro, quase como se pudesse existir por si só, encapsulado por uma membrana de autossuficiência e isolamento. É a formação do corpo-trincheira a que assistimos, um lugar para o qual a aproximação do outro, do estranho, se equivale a do inimigo a ser combatido.

No lugar de um corpo que fala ao outro e também o escuta, em um sistema de trocas, ergue-se o corpo-fortaleza, para o qual a presença do diferente assume um sentido de pura ameaça, e onde a fala torna-se instrumento de aniquilação. Vale lembrar, no entanto, que a linguagem é uma experiência e uma construção coletiva, de modo que só pode acontecer quando compartilhamos com o outro algo que nos é comum.


Em que ponto nosso lugar no mundo passou a operar de acordo com a lógica da territorialidade? E como transmutar essa lógica de modo a fazer da presença do outro, não uma ameaça, mas um convite: à mudança, ao convívio e à transformação de nossas certezas e formas fixas?


De fato, empreender um movimento de desterritorialização pode ser vivido como uma grande ameaça quando empenhamos tantas energias em nos fixar em identidades coesas e bem estruturadas. Mas, se partirmos do pressuposto que para conviver é preciso compartilhar de um contexto comum, tudo leva a crer que a tentativa de nos isolar em pequenas ilhas, bradando sozinhos e aos quatro ventos nossas confortantes verdades universais é uma aposta enganosa.


Entre o lugar de fala e a capacidade de escuta, é também preciso estabelecer uma outra relação com o silêncio e com o silenciamento, usados, na lógica da trincheira, como armas para neutralizar a presença do outro. Há muito o que se pensar e o que praticar, mas isso requer tempo de espreita e espera, além da capacidade para sustentar o silêncio.


Pensar exige disponibilidade para demover-se das certezas e baixar a guarda. É preciso abrir mão da atitude de guerrilha para deixar-se atravessar pelo fora sem que isso signifique tornar-se irrelevante. Pensar é também estar disponível a praticar a arte da escuta, cada vez mais rara em tempos super argumentativos, em que as palavras são usadas como escudo ou como metralhadora.


A própria concepção de lugar de fala como ponto de vista, indica o quanto o conceito tem sido praticado de modo redutor. Por que existir e falar a partir de um ponto fixo se o interessante é, justamente, poder transitar por um campo de linhas de forças? Por que fincar bandeiras e erguer muralhas, se o mundo é vasto em relevo e altitude e podemos experimentar a visão de diferentes distâncias?


Há muito o que se pensar quando a defesa do lugar de fala nos torna surdos e impermeáveis ao que vem do outro, fazendo de nós seres semelhantes a cães de guarda, com os dentes à mostra, rosnando junto ao portão, para qualquer um que chega com novos ares.


Que nossos lugares de fala possam ser plurais e nômades, que possam se abrir às linguagens que vem de outros lugares para criar campos de encontro e intersecção. Que possamos praticar, com mais generosidade, a arte da escuta e do silenciamento. Silenciar é também poder abrir-se às sutilezas. Que o cão de guarda que nos tornamos recupere sua capacidade de brincar e conviver com mais leveza e alegria.

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© 2022 Marta Picchioni

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