Do metaverso às espécies companheiras: futuros em jogo
- Marta Picchioni
- 4 de nov. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 7 de nov. de 2021
Muitos sinais nos indicam que habitamos o fim de um tempo. Ponto de inflexão, momento de virada, fronteiras que se deslocam e, neste movimento, nos abrem perspectivas inéditas de um mundo por vir. Ainda que não seja possível avistar ao certo que tipo de futuro estamos construindo, algumas pistas se enunciam, na medida em que nos dispomos a observar com atenção as linhas que compõem nossos encontros.

imagem: Jaider Esbell
No mês em que Mark Zuckerberg anuncia a criação de seu metaverso: uma aposta para o conglomerado de tecnologia e mídia social, que envolve não apenas o facebook, mas muitas mídias das quais estamos em acoplamento direto, concluo a leitura do livro de Donna Haraway, O manifesto das espécies companheiras. É também quando recebemos a triste notícia da morte do artista e pensador indígena, Jaider Esbell, que vinha alargando fronteiras e criando universos de alteridade - um metaverso orgânico e povoado por co-existências.
Em algum lugar de nossos corpos e subjetividades todas essas linhas, partidas de concepções de mundo tão distintas, se cruzam e passam a compor um campo de encontros que nos constitui e modifica. É neste campo que Zuckerberg anuncia a criação de seu metaverso, embora saibamos da existência de um outro, que já atua entre nós e é composto por virtualidades e presenças tão diversas quanto são as espécies que habitam nosso mundo.
Enquanto Donna Haraway e Jaider Esbell nos trazem, por meio de diferentes linguagens e experiências, elementos para pensarmos e habitarmos as fronteiras do mundo tendo em vista o convívio interespecífico e cosmogônico entre plantas, animais e humanos, seres viventes e não viventes, corpos materializados e presenças ancestrais, Zuckerberg aposta e nos apresenta um metaverso capturado e monetizado de largada, onde o principal produto não é outro, senão o intercâmbio vampirizado de nossas almas.
Ainda no campo das co_incidências, este é também o mês em que Suely Rolnik anuncia o lançamento de seu novo livro: Antropofagia Zumbi, trazendo elementos para pensarmos o fazer antropofágico das perspectivas ativa e reativa. Enquanto o último nos conta de um fazer devorador e predatório em relação ao mundo onde existimos, o primeiro se compromete com a prática da reciprocidade e da alteridade significativa, uma antropofagia da dádiva, portanto.
Ainda que essas diferenças sejam claras a partir de uma leitura crítica de nossos modos de vida, na prática os acontecimentos se misturam e já não é tão simples discernir uma da outra. Daí que, quando habitamos um campo em que todas essas linhas se cruzam, as distinções entre um campo de captura e outro, de criação, tornam-se tênues o bastante para que já não tenhamos clareza sobre o tipo de jogo em questão.
Cartografar o campo de forças em que nos encontramos, identificando nele as linhas em curso - inclusive aquelas produzidas por nossas ações - é tarefa de toda uma vida. Em um dos trechos produzidos a partir de sua pesquisa de auto decolonização, Jaider Esbell compartilha conosco algumas de suas estratégias para identificar fronteiras e habitá-las, ora alargando-as, ora equilibrando-se sobre o fio da navalha. Diz ele:
(...) escrevo minhas próprias leituras de mundo sendo esse sujeito híbrido com pés e mãos em campos opostos, o que me exige um alongamento amplo para dar passadas de um equilibrista. Tornar evidente a minha trajetória, portanto a trajetória de um povo, é valer-se com outros propósitos da já tão pesada exposição de vida a qual fomos e somos ainda submetidos. A diferença talvez esteja em nosso próprio protagonismo, pois falar da própria história deve soar diferente de quando outros falam ou escrevem o que apenas imaginam.
É de um corpo fronteiriço que ele fala - e continua falando mesmo após sua travessia, já que passa a habitar a esfera da ancestralidade. Um corpo que experimentou e experimenta viver entremundos e para o qual o alongamento e o equilíbrio foram estratégias de afirmação e co-existência entre os não-indígenas.
Como nos lembra Haraway, ao tomarmos como campo de pensamento o lugar do interespecífico, a menor unidade de análise possível são sempre as relações, campo de tensão por definição e de onde não é possível encontrar uma saída harmônica ou resolução definitiva.
O que temos como guia, então, é nossa bússola ética, que nos aponta em direção a um alargamento das vidas e de seus modos. Seu intuito maior é dar vazão às diferenças ao invés de suprimi-las. Habitar os espaços híbridos e criar intervalos que também pedem de nós outras maneiras de estar.
Ao habitar esses pontos de inflexão é necessário que não o façamos de maneira ingênua. As cartas estão dispostas no tabuleiro do tempo presente, indicando rotas de futuros que, seguramente recairão sobre nossas existências, instaurando modos de viver, de educar, de nos relacionar, de escolher e de nos compor com as vidas em curso.
Eis porque o metaverso de Zuckerberg deve ser visto com desconfiança e muita prudência. Não por se tratar de uma resistência ao que é virtual - a virtualidade também é campo potencial e, como tal, se atualiza no tempo presente - mas, por se apresentar como estratégia de dominação de uns sobre outros, poucos sobre muitos, configurando-se como campo de exercício de um poder que se invisibiliza ao passo em que se associa à visibilidade compulsória dos outros, agora tornados usuários.
Aqui o que move já não é o campo da ética nem o de uma antropofagia da dádiva, mas outro, afinado aos mecanismos de controle e da fabricação de zumbis. Tal metaverso, travestido de multiplicidade inclusiva, opera, justamente, para a produção do único, do hegemônico, e do que nos rouba as diferenças da vida, por isso, é o que menos nos interessa.
Diante do que se enuncia, podemos então nos servir de uma pequena parte do vasto legado deixado por Jaider: a começar pela ideia de fabricar nossas próprias armadilhas - mundos, palavras, esferas - para que não cairmos, assim, tão desavisadamente, em armadilhas terceirizadas.
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