Dos presentes e das presenças
- Marta Picchioni

- 23 de dez. de 2021
- 3 min de leitura
Então é Natal!
A cidade se agita como fazem as formigas em torno do açúcar. Antes do ano acabar ainda haverá muito por acontecer: listas de afazeres e presentes, idas e vindas pela cidade também repaginada pela força da data.

imagem: Michelangelo
Embora haja quem já não acredite em Papai Noel ou quem critique a transmissão do enredo natalino, geração após geração, há também quem faça do festejo uma ocasião para celebrar a chegada de uma nova vida, simbolizada pela figura de Cristo.
Em um caso em outro, somos todos invadidos pela onda comemorativa que acaba por se tornar ocasião para celebrar os bons encontros em família, principalmente quando existem crianças pequenas.
É interessante tentar entender o percurso que fez de um festejo de origem pagã, o centro de uma narrativa religiosa e, mais tarde, ícone da sociedade de consumo. Em larga medida, o natal fala sobre nossa capacidade de produzir narrativas, na medida em que nos apropriarmos das ocasiões que movem a multidão, para reinventar os códigos em torno delas, fazendo com que permaneçam vivas em nosso desejo.
Originário das festas pagãs da antiguidade, o natal era ocasião para celebrar a chegada do inverno e da renovação, quando a natureza se contraia para, então, se refazer, desabrochando mais tarde, com a chegada da primavera. Tais festas celebravam os ciclos da vida, do nascimento à morte, da expansão à contração.
Foi só bem mais tarde, com a consolidação do Cristianismo, por volta do século VI, que a ideia de renovação passou a se associar ao nascimento do menino Jesus, uma maneira de cristianizar a festa, que já era popular, atribuindo-lhes novos códigos e criando significados conectados ao novo contexto. A capacidade regenerativa própria à natureza, cede lugar à cena do presépio, onde a ideia de renovação gira em torno da vida de um único salvador, o menino-messias, construção social que diz muito de nosso pensamento ao atribuímos a condução de nossas vidas - pessoal e política - à uma instância exterior e superior que nos protegeria.
A figura do Papai Noel aparece bem mais tarde, embora ainda relacionada aos preceitos morais e religiosos de bondade e generosidade, direcionada aos mais pobres e aos bem comportados apenas nesta época do ano. Sua figura foi inspirada em São Nicolau, um bispo conhecido por deixar moedas próximas às chaminés das pessoas necessitadas, ação vista como exemplo de compaixão a ser seguido pelos bons cristãos.
A imagem que conhecemos do Papai Noel, como o velho sorridente e bonachão, de barbas brancas e roupas vermelhas, distribuindo presentes às crianças que se comportaram conforme o esperado, é recente: foi resultado de uma campanha publicitária da Coca-Cola, entre 1920 e 1930, o que mostra, mais uma vez, nossa capacidade de remodelar as narrativas que nos constituem.
Das moedas nas chaminés deixadas por São Nicolau à profusão de papais noéis que invadem os shoppings centers, não há dúvidas de que a narrativa natalina foi perfeitamente adaptada aos pilares de nossa sociedade de consumo. Desde a árvore iluminada e repleta de embrulhos para toda a família, até a mesa farta de comidas importadas a preços estratosféricos, os códigos que pautam a comemoração do Natal nos fazem questionar sobre seus sentidos nos dias de hoje.
Ainda faz sentido reproduzirmos os códigos de uma comemoração pautada pelo consumo excessivo de objetos, comida e euforia?
Talvez, em tempos de esgotamento, o que ainda vale a pena de ser comemorado no natal seja a busca pela simplicidade: mais o desfrute da companhia daqueles com quem compartilhamos a vida do que a obrigatoriedade de comprar e distribuir presentes.
Se novos tempos pedem a criação de novos sentidos, que direções nos parecem interessantes para que antigas tradições não se tornem hábitos vazios e que já não dialoguem com as questões do presente?
Dos presentes às presenças, talvez esta seja uma boa ocasião para repensarmos nossos automatismos na reprodução da experiência natalina, que talvez já não faça sentido deixar como legado aos mais novos.






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