E brincar de matar e morrer, pode?
- Marta Picchioni
- 21 de jan. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 15 de mar. de 2021
Sabemos que a brincadeira é, por excelência, a linguagem primordial da infância. É por meio dela que as crianças se expressam, criam enredos, subvertem a lógica das utilidades ou mesmo recriam temas que as mobilizam.

Enquanto brincam, as crianças pesquisam sobre as relações que observam à sua volta, desempenham papéis, criam resoluções para seus conflitos, testam hipóteses, limites, experimentam a possibilidade de transgredir regras e transitam por diferentes universos. É assim que podem ser pais, mães, dragões, guerreiros ou, simplesmente, dar vazão aos movimentos do corpo: correr, pular, subir, se esconder. Ou, ainda, dedicar-se demoradamente à construção de cenários e à exploração dos materiais disponíveis: enfileirar, separar, equilibrar, desenhar.
Por todos esses motivos, o brincar é uma das linguagens privilegiadas de investigação e alvo de grande investimento por parte de educadores comprometidos com a infância e, no entanto, quando foge àquilo que nosso ideal de infância espera ver encenado, após tanto estudo e investimento, muitas dúvidas pairam no ar.
Algumas vezes, mesmo diante de um material diverso, pouco estruturado e não estereotipado, o que emerge das situações de faz-de-conta são enredos pouco associados ao ideário de uma boa infância. Brincar de matar e morrer, por exemplo, ou enredos que envolvem lutas físicas, costumam ser pouco compreendidos e sustentados pelos adultos que os presenciam que, sem clareza do que fazer, optam pela pura e simples proibição.
Proibir pode parecer o caminho mais fácil, sobretudo quando contamos com bons argumentos, como aquele que diz que ao brincar de luta, as pessoas podem se machucar de verdade e, aí, já não nos encontramos no campo do brincar, mas no terreno da vida real. É verdade. Algumas brincadeiras são tão intensas que terminam por transbordar a si mesmas e o cenário delimitado para o seu desenrolar.
Ao proibi-las, entretanto, perdemos a oportunidade de assegurar um caminho investigativo de nossa parte também. Afinal, o que está em jogo, quando algumas crianças investem em um brincar “de margem” ou de repetição, mesmo tendo uma vastidão de possibilidades à sua frente? Por que a necessidade de medir forças, confrontar e jogar com o próprio corpo no contato direto com o outro?
Se o brincar é meio de investigação para as crianças, é necessário que seja também para os adultos. Assim, entre a ação daquele que brinca e daquele que observa, é importante que sustentemos um hiato, um tempo de suspensão que permita que as ações se desenrolem sem nossa intervenção direta. Recuperar os princípios do brincar para a construção da linguagem e da subjetividade, talvez nos dê segurança para lidar com enredos que fogem às expectativas e insistem em emergir, a despeito de nossos esforços para direcioná-los a outro lugar.
Sustentar o brincar como campo investigativo passa pela possibilidade de afirmar os enredos, tal qual acontecem. Aqui, uma brincadeira de luta pode gerar boas oportunidades para se aprender, por exemplo, sobre como impor limites sobre o próprio corpo ou sinalizar que um limiar de permissão foi ultrapassado - tema atualíssimo nos dias de hoje, em que muitos jovens e adultos têm dificuldade em dizer e ouvir não.
Diante de uma brincadeira considerada violenta, também somos provocados a desconstruir nosso olhar moralizante que nos diz como deveria ser a brincadeira ideal, pois, a brincadeira é tal e qual se apresenta, de modo que o importante é estarmos dispostos a observar o plano do real. Existiriam maneiras dessa energia ser aproveitada a fim de incrementar o próprio brincar, de modo a criar caminhos alternativos? É uma resposta que só a observação mais atenta pode nos oferecer.
É preciso levar em conta que as crianças, tanto quanto nós, vivem em um mundo mutante e repleto de situações de violência real que também as atravessam. Desta forma, faria pouco sentido que seus brincares fossem povoados somente por enredos idílicos e salutares, já que somos compostos e afetados por múltiplos e ambíguos sentimentos.
Ocorre que o brincar, tanto quanto a literatura infantil, tem sido alvo de um movimento moral e politizante do qual faz parte a vontade de higienizar a linguagem e os enredos, o direcionamento aos finais felizes e a ausência de conflitos, por meio da valorização de mensagens positivas e edificantes.
Mas então, o que fazer com sentimentos tão humanos como a raiva, o ódio, a vontade de testar limites e de burlar as regras? Que destino dar à inveja, à vingança, à vontade de poder ser “do mal” e de circular pelas N possibilidades da experiência humana, presente tanto nas crianças como nos adultos?
Se desde cedo essas linhas de expressão se tornam interditadas, como construiremos recursos próprios para lidar com os afetos pouco valorizados que também nos compõem?
Uma criança que traz a temática da morte ou da violência para o seu brincar mostra que está mobilizada por este assunto - e não necessariamente por vivê-lo em casa. Outro grande equívoco de um olhar moralizante sobre o brincar e sobre as famílias é supor que seus enredos tenham uma ligação direta com o que se passa na vida doméstica de quem brinca.
A inspiração para uma brincadeira pode vir de muitos lugares: uma cena assistida, uma conversa, um desenho animado, fragmentos do noticiário. O importante é que nós, adultos, estejamos atentos para que, diante de um enredo de margem ou de repetição, possamos em primeiro lugar, observar para, a partir daí, pensar em modos de ampliar suas possibilidades, ajudando a torná-lo mais rico e diversificado.
Nossa tarefa é, portanto, investir na criação de recursos próprios para sustentar as expressões da infância em toda sua inteireza e complexidade, aceitando esses mesmos traços em nós mesmos. Que façamos uma auto análise: que temáticas nos atraem? Que tipo de livros ou filmes gostamos de ler ou assistir? Que tenhamos disponibilidade para também nos colocar em questão e, desta forma, estarmos mais abertos para o encontro com as crianças reais, seus interesses e seus brincares.
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