Enquanto esperamos Godot…
- Marta Picchioni
- 28 de abr. de 2022
- 2 min de leitura
Não falemos mal, então, dos nossos dias, não são melhores nem piores dos que os que vieram antes. Não falemos bem, tampouco. Não falemos.
(trecho da obra de S. Beckett, Esperando Godot)

imagem: Théâtre du Mouvement
O clássico escrito em 1949, por Samuel Beckett, conta uma história aparentemente simples, que se passa em um cenário mínimo, composto apenas por uma árvore desfolhada e uma pedra. É ali que Vladimir e Estragon, dois amigos maltrapilhos, esperam pela chegada do senhor Godot.
Todo o enredo consiste em jogar luz a este tempo da espera, no intervalo e na distância entre o que se passa na vida real dos dois amigos e em suas projeções em torno da chegada de Godot, o futuro incerto que traria consigo a promessa de tempos melhores e livres de adversidades.
Embora permaneça como figura imaterial - já que só existe no discurso e na imaginação dos amigos - Godot encarna tudo aquilo que está para fora e para além da cena da vida, por isso mesmo se anuncia como o grande salvador de uma existência medíocre e condenada ao vazio.
Enquanto esperam em meio a um tempo que se repete e ao silêncio ensurdecedor, os amigos se entediam e se esquecem do que exatamente estão fazendo ali e, afinal, por quem ou pelo que esperam? Eis que são surpreendidos pela aparição de uma criança-mensageiro que anuncia que Godot já não virá hoje, mas quem sabe venha amanhã…
A repetição contínua dos dias e a espera dilatada, nos remete à ideia nietzschiana de eterno retorno, nos convocando ao questionamento vital sobre como temos vivido a espera inerente à própria vida. Se a "salvação" não virá com a chegada de Godot, virá de onde?
O mais interessante de uma boa obra é justamente sua capacidade de nos fazer retornar às temáticas essenciais a qualquer tempo, atualizando suas provocações. Enquanto assistimos os amigos esperando Godot, somos necessariamente convocados à cena e ao questionamento de nossas próprias esperas. Que dimensão temos dados aos nossos pequenos e grandes Godots?
Se a vida não é outra coisa senão um intervalo entre nascimento e morte, resta-nos afirmar aí, neste campo de imanência, toda sua grandeza e magnitude, como tenta fazer a criança-mensageiro ao anunciar que, hoje, Godot não vem.
A espera por Godot apresenta-se então como um campo aberto às múltiplas possibilidades. Se o sentido da vida não virá de nenhum salvador externo à cena, seremos impelidos a criar sentidos próprios e interessantes, o que na obra de Beckett resvala para um certo enamoramento com um espécie de niilismo nonsense.
Sim, pois se é verdade que a espera por salvadores sempre se atualiza, chamando atenção para as expectativas depositadas em toda uma maquinaria dedicada à produção de desejos, é também verdade que tal espera pode ser vivida de maneira intensiva, divertida e em boa companhia.
É o que nos ensinam os amigos Didi e Gogo, agora tratados carinhosamente por seus apelidos. Ao afirmar o tempo espera como o intervalo da vida, já não importa se ou quando Godot virá, mas sim o modo como cuidaremos do intervalo, dos bons encontros, das amizades e da capacidade conquistada de rir de si mesmo.
Comments