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Ensino domiciliar para além do Sim e do Não

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 22 de abr. de 2021
  • 12 min de leitura

Atualizado: 23 de abr. de 2021

por Marta Picchioni e Ana Carolina Carvalho


De tempos em tempos, o movimento pela aprovação do homeschooling ou ensino domiciliar no Brasil volta a ocupar as notícias e os ânimos daqueles contrários ou a favor a esta modalidade educativa. Ao que tudo indica, trata-se de uma reivindicação antiga e, embora também seja uma das bandeiras do governo atual, sabemos que não se restringe à demanda de grupos religiosos e conservadores, apenas.


Marta Picchioni Ana Carolina Carvalho


O sim e o não, do modo estanque e definitivo como aparecem, não deixam margem ao debate mais abrangente e à troca de ideias, sempre necessários ao entendimento mais amplo da questão que toma força, justamente, em tempos de pandemia. Pensando em habitar um espaço de discussão que se situa entre um e outro extremo - o sim e o não - e procurando explorar mais a fundo o lugar das dissonâncias, convidei minha amiga, Ana Carolina Carvalho, para que possamos ponderar, juntas, o que está em jogo quando este tipo de demanda se mostra outra vez presente e ativa entre setores variados da sociedade civil.



Ana Carolina Carvalho (AC): Eu sou psicóloga de formação, mas trabalho há muitos anos na área da educação, primeiro como professora de educação infantil em escola particular em São Paulo, depois como formadora de educadores junto a ONGs, atuando sobretudo com redes públicas municipais de muitos lugares do Brasil. Falar sobre a escola, olhar para os desafios dessa instituição, que não existiu desde sempre, mas foi uma invenção da sociedade, é terreno corrente para mim, território comum, mas nem por isso dominado. São muitos os desafios que se apresentam para a escola. A afirmação de que a escola está em crise é comum e nem tão recente assim. No entanto, com todos os enfrentamentos que se fazem necessários, com todas as mudanças que são urgentes, sigo acreditando nessa instituição. Se a escola foi uma invenção, um dia ela pode sumir? Sim, mas eu prefiro ir por outro caminho: se foi inventada, podemos recriá-la? Eu acredito que sim, ela não precisa ser sempre igual: pode ser modificada. E deve ser.


Marta Picchioni (MP): Sim! Recriar a escola, afirmando-a como um lugar de vida e de emergência de novos saberes é um caminho no qual ambas, como profissionais da educação, acreditamos. O que chama a atenção nessa discussão sobre o ensino domiciliar é a insistência com que, vez ou outra, ela reaparece no debate social mais amplo, vindo de lugares muito distintos: desde grupos religiosos e conservadores, que pleiteiam o direito de ensinarem seus filhos a partir de crenças específicas, até aqueles grupos mais libertários que elaboram uma crítica mais sofisticada à massificação levada a cabo pela instituição escolar que, como sabemos, ainda reproduz muito do que a 2a Revolução Industrial elegeu como modelo de indivíduo a ser produzido em larga escala. Deste ponto de vista, a crítica me parece mais procedente e embora eu, a princípio, também não aposte na saída domiciliar, acho que nos beneficiaríamos de ouvir essa crítica com mais atenção.

Também me interessa muito poder pensar a questão para além do puro e simples veto ou aprovação, porque, de todo modo, sabemos que essa prática já acontece.


(AC): Também acho importante essa perspectiva do diálogo, Marta. Sair da dualidade, que parece ser a marca de nosso tempo. Complexizar o sim e o não. Ouvir a crítica, trazer para dentro, repensar a escola a partir dela. Temos a tendência de nos cristalizar em uma determinada posição e isso nunca é bom. A escola tem problemas em seu modelo. Isso é fato e precisa ser olhado. O que me pega nessa discussão e na eventual aprovação do ensino domiciliar é que essa me parece ser uma proposta de exceção. Será sempre para poucos. Será que é o que a educação mais precisa nesse momento? Quantos, de fato, têm condições de levar a cabo e com qualidade o ensino domiciliar? Outra coisa que me pega é que desde a constituição de 1988, a educação passa a constar no âmbito dos direitos das crianças e jovens de nosso país. E de lá para cá, foram muitas as batalhas e as discussões em torno não só da manutenção do direito, mas da garantia do ensino de qualidade para todos, a questão da equidade, que vinha sendo discutida e que se colocou fortemente por meio da base nacional curricular comum. A defesa do ensino domiciliar em geral resvala para o direito que as famílias têm de educar seus filhos e filhas como desejarem. Será que isso não seria uma deturpação de quem teria o direito? Como exemplo de comparação, me vem à memória a discussão em torno das creches, por exemplo, cujo direito de acesso é muitas vezes visto como sendo da mãe. Ainda temos muito essa visão: a mãe não trabalha, então não tem porque colocar o filho na creche, não tem esse direito. Só que esse raciocínio escamoteia o direito da criança à vaga na creche, o direito a ter aquelas experiências que a creche pode proporcionar. Em relação à escola, o direito não é apenas relativo ao conhecimento, mas ao convívio com outras crianças e jovens. Com a diferença, o diverso. E esse direito é da criança e do jovem. Como ficaria isso no ensino domiciliar? Afinal, onde colocar o direito? Nas famílias? Ou nas crianças e jovens?


(MP): Concordo com você em relação a essa questão do direito. Estar na escola é um direito das crianças ou das famílias? Como estabelecer essa distinção tão tênue entre uma e outra instância que, de largada, coloca famílias e escolas como instituições antagônicas e em um tipo de oposição? Essa é uma questão que me parece central neste debate, quando vemos tantas situações em que família e escola disputam um certo tipo de ascendência sobre as novas gerações - e acho que o movimento por um ensino domiciliar cresce justamente nesta brecha - acabando por perdê-las - as crianças - de vista. Sinto que criamos um ambiente de disputa, ainda que em nome das crianças e dos jovens, mas cegos e surdos para suas presenças e necessidades reais. Prova disso é que falamos tanto em uma escola de qualidade que, na prática, se distancia de muitas maneiras do que emerge de real e de interessante em cada grupo, em cada sala de aula, nas relações singulares. Parece que investimos tantos esforços num âmbito macropolítico - das leis, do direito, das grandes regulamentações - e nos esquecemos que escolas e famílias são feitas de gente, pessoas singulares que constroem a educação no dia-a-dia, no chão da escola e que, talvez, contem com poucos recursos, internos e materiais, para tomar essa prática para si, para inventar junto com as crianças e jovens, fazendo da escola esse lugar que a gente se remete o tempo todo, mas nem sempre reconhece na prática. No fim, temos, de um lado o grande discurso do Direito e do outro, as vidas com suas intensidades que acabam sendo enquadradas, regulamentadas por esse mesmo discurso. Não parece um contrassenso?


(AC): Marta, acho que você toca em um ponto muito importante. Aliás, gosto de pensar na etimologia dessa palavra - importante, que vem do latim: importare. Trazer para dentro. Da escola, não no sentido abstrato do discurso, mas o que acontece de fato na instituição, entre as paredes e muros, ou como você fala, em seu chão. E se formos trazer para dentro, veremos que são muitas as escolas. Conhecemos de fato as boas experiências? Por que elas ainda ficam localizadas em “casos de sucesso”, que acontecem graças a uma conjuntura especial? Avançamos na elaboração de leis e documentos, mas por que não conseguimos levar a cabo na prática o que esses documentos preconizam? Penso numa efetiva formação de educadores, a longo prazo, disseminada e com qualidade, sem que, a cada governo, tudo vá por água abaixo. O eterno recomeçar da educação, quando ela é sempre processo. Há um esgotamento, uma descrença e acho que aí o ensino domiciliar ganha espaço.


Por outro lado, as boas experiências demonstram o quanto a escola pode ter uma força. Você também toca em outro ponto crucial: o antagonismo entre escola e família. Ele se dá de formas diferentes nas escolas privadas e públicas, mas observo que está sempre aí. Há uma tensão, um jogo de empurra e de culpabilização. Uma disputa. E então, nessa perspectiva, a aprovação do ensino domiciliar seria algum tipo de vitória da família? Prova de que a escola não funciona ou está fadada a desaparecer no futuro? A questão, acho, é falarmos de que escola estaria fadada a desaparecer e qual apareceria em seu lugar. Certamente, a que terá mais chances de dar certo é aquela que inclui de fato as famílias e comunidade, tudo isso aliado a uma formação continuada e de qualidade de seus educadores. Pessoas, comunidade. Concordo com você que o caminho estaria aí. Uma escola feita para as pessoas, nunca para a massa de estudantes e para a família de modo geral, mas para as famílias e os estudantes de carne e osso. Será algo tão difícil?


(MP): Muito precisas e preciosas as tuas reflexões, Ana Carolina! São muitos pontos a serem explorados, muitas possibilidades pra gente enveredar e pensar as práticas escolares, sobretudo a sala de aula. Eu venho de um percurso de mais de vinte anos de chão de escola, em suas várias modalidades, mas sempre chão. E sempre escola. Partindo dessa experiência vivida, desse corpo que marca e é marcado pelo estar na escola, digo que reproduzimos cada vez mais uma estrutura tutelar, onde os documentos, as formações o suposto saber está sempre fora, na figura do formador, na novidade da vez, nas demandas que caem do céu. O que me encanta na escola é justamente a possibilidade de ser um lugar de invenção. Aquelas pessoas que estão ali, que habitam aquele espaço, que sabem muitas coisas, e que têm totais condições de criar práticas, de inventar caminhos com seus grupos. Mas a instituição escolar, suas fragmentações, seu modo de operar, na grande parte das vezes, não sustenta esse fazer. Vejo uma escola que ainda prima pelos controles, pela reprodução das estruturas, das coordenações como figuras verticalizadas de formação, o que é insustentável nos dias de hoje, se levarmos em conta que as linhas do saber e da produção de interesse e de aprendizagem vem de todos os lugares, estão horizontalizadas, vem dos pares, dos estudantes, do mundo, de tudo aquilo que acontece.

Em tempos incertos, como este que vivemos, vejo que as instituições têm a tendência a se fecharem ainda mais, a se afirmarem no terreno do já conhecido ou, na outra ponta, da rápida adesão a modismos. A escola continua a ser para-raio dessas importações, dessas narrativas pré fabricadas, uma escola ainda muito presa às estruturas verticalizadas, às prestações de contas, às reproduções hierárquicas - que acabam se reproduzindo nas salas de aula - e dialogam muito mais com uma estrutura de poder do que com o que borbulha na base, essa vida que pulsa e a vontade de fazer diferente. Pra mim, a chave de uma invenção está em desterritorializar esses lugares fixos, tornar o professor um formador de seus pares, alternar esses papéis, descer de nossos pedestais para nos colocar disponíveis aos encontros, com estudantes, famílias, com o professor da sala ao lado, criando um ambiente de efervescência. Acho que ainda precisamos de muita chancela para inventar, o que acaba por empobrecer as experiências.

(AC): Eu penso que você está certa quando fala da verticalização como marca geral sobretudo da escola moderna que perdura até hoje, da reprodução como norma, dos lugares que fixam. Não acho que seja necessariamente ruim vir algo de fora. Precisamos do estrangeiro para sabermos mais de nós mesmos e do mundo. Penso em como nos formamos com o outro, o que está fora, o que traz outros mundos, outros olhares. A questão é ficar nisso apenas - nessa reprodução de uma certa verticalidade que gera uma dependência: o outro é quem sabe. É não transformar em algo dentro, importante - importar para dentro, transformando em algo próprio, com sentido para aquela escola, aquele grupo. Reconhecer o que aquele grupo sabe e como pode dialogar com o que vem de fora.

Esse jeito fixo e vertical que observamos na escola tira sua força, sua capacidade de invenção, como você aponta. E isso vai se repetindo em muitas esferas - quem sabe é sempre o outro, seja ele o documento oficial, a norma, o formador, o diretor, o professor. Curiosamente, em sua raiz, a escola tinha uma ideia de rompimento e invenção. Lembro das palavras de Jan Masschelein, professor belga que se dedica a pensar a escola e faz em um de seus livros, Em defesa da escola - uma questão pública, em coautoria com Maarten Simons, uma retomada de sua origem, desde a criação da escola grega, que nasce como uma possibilidade de democratização do tempo livre, cujo acesso não era permitido a todos: a depender do seu lugar social, alguns jovens não tinham saída: precisavam entrar o mais cedo possível na lógica do tempo produtivo. A escola grega inaugurou o escolar, que quer dizer justamente “tempo livre” e instaurou um princípio de igualdade: ali, todos poderiam ser iguais, a origem não mais importava. Ao subverter uma ordem, claro, causou também o desconforto. Talvez esse desconforto com a escola perdure até os dias de hoje: ela está longe de significar de fato uma possibilidade concreta de romper com as desigualdades, mas tem isso como promessa. Penso que existe um jogo de forças em nossa sociedade - um amor pela escola, mas também uma desconfiança: e se ela cumprir com tudo aquilo que promete?

Sabemos que desde a época moderna, a escola foi cada vez mais se institucionalizando, assumindo lugar de controle e norma e, muitas vezes, se afastando desse lugar de invenção, de democratização do tempo livre, fora do tempo produtivo do mundo. Na contemporaneidade, há muitas tentativas de inovar, de retirar a escola desse lugar de controle, dominação e verticalização. Penso que no âmago das propostas do ensino domiciliar convivem diferentes ideias, que conflitam em sua origem. Há, sim, uma desconfiança em relação ao que a escola pode realizar se cumprir seu papel e dizer a que veio. Mas há também um desejo de romper com a escola que domina e oprime, costurado em outro tipo de desconfiança. São correntes opostas que estão propondo o mesmo projeto, cuja mensagem envolve uma ideia sedutora de que a escola não pode dar certo. O terreno em que a escola está plantada é complexo e cheio de acidentes, é terra difícil de ser arada, mas não quer dizer que seja infértil. Temo que a aprovação do ensino domiciliar, no qual não acredito, por diversas razões, possa alastrar a ideia de que a escola é projeto falido, quando, do meu ponto de vista, o que acontece é que ela sempre esteve em lugar perigoso, assumindo contradições desde sua origem. E, para transformá-la, penso que é preciso compreender essas contradições e complexidades.


(MP): Muito interessante este ponto que você traz, dos opostos que propõe o mesmo. Se olharmos a questão por esta perspectiva, veremos que essa tendência de afastamento ou de ruptura com o que é comum, para ficar entre os seus, em terreno protegido, conhecido, tem sido um sintoma de nossos tempos, para além do que acontece com a escola. Essa desconfiança de que você fala, se dá em relação à escola, mas também à alteridade em geral: o diferente de mim. Neste sentido, a escola que surge como um espaço de acesso ao tempo improdutivo, como você diz, acaba por se transformar no oposto disso: na escola da 2a Revolução Industrial, que atende a todos da mesma maneira, tudo igual, o mesmo, antecipando e instaurando uma vivência do tempo produtivo e massificado. É interessante essa virada.


Em todo caso, o movimento por uma educação domiciliar surge também como um efeito dessa sensação de esgotamento mais geral, acredito eu. Se analisarmos bem, na prática, será muito difícil sustentar uma casa com a presença constante de adultos que desempenhem funções sobrepostas de pais e professores em relação a seus filhos, por exemplo. A experiência da pandemia deu mostras de que esta sobreposição é difícil, caótica até, ou seja, no fim das contas, o dado de realidade se impõe. Acho que o que fazemos aqui é, justamente, tomar o desejo pelo ensino domiciliar como objeto de análise. O que se deseja, quando se quer um ensino domiciliar? Mais controle? Afastamento do que me ameaça? Proteção contra o fora que, de todo modo, já está dentro? A possibilidade de fazer a seu modo sem ter de pedir permissão? Acho que esta seria uma questão importante para pensar e até para não temermos o desejo por um ensino domiciliar: talvez ele não se sustente.

Neste sentido, acho que a defesa da escola vem de sua própria função e relevância. Enquanto acharmos que ela é importante ou que cumpre um papel fundamental na sociedade, ela persistirá - o que não significa que não precise se reinventar sob muitos aspectos, que é sobre o que falamos até aqui.


(AC): A necessidade de se reinventar é urgente para a escola. E penso que devemos terminar essa conversa com essa pergunta: qual é a escola que necessitamos? Que escola defendemos? Não é qualquer escola, mas um projeto que possa responder às necessidades educativas, no sentido amplo, de uma educação integral, das crianças, jovens e adultos. Queria também terminar o diálogo com essa palavra ecoando: alteridade. Penso que é palavra chave no terreno da educação e da existência humana. E nesse sentido, queria mais uma vez defender a escola como o espaço em que nos colocamos, inevitavelmente frente ao outro, ao diferente. Só isso, já é muito como experiência educativa.


(MP): Muito bom Lili! Muito boas as suas reflexões e a experiência de poder dialogar com tranquilidade sobre um tema tão caro a todos nós, de uma maneira tão aberta. Estamos precisando disso. À essa escola que você fala, eu acrescentaria, junto à dimensão da necessidade, a do desejo: que seja uma escola que permita a emergência desse desejo, e junto à dimensão da alteridade - em relação ao outro - acrescento a possibilidade de diferirmos de nós mesmos. Que essa escola não tema os fluxos e as experimentações que movem a vontade de estar ali. Adorei nossa conversa e que venham muitas outras!


***


Ana Carolina Carvalho é psicóloga e mestre em educação. Atua no terceiro setor como formadora de educadores junto a redes públicas. É membro do Instituto Avisa Lá e Instituto Emilia, ambos em São Paulo, e atua como assessora na área de leitura e escrita em escolas e editoras.


Marta Picchioni é psicóloga, pedagoga e mestre em educação. Atuou como professora do ensino básico e superior, é autora do livro Família e Escola: desafios do presente e escritora no (hi)atoeducativo.


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