Entre o ensinar e o aprender, um ato de variação contínua
- Marta Picchioni

- 17 de jun. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 18 de jun. de 2021
O que passa e o que se passa entre os atos de ensinar e de aprender? Entre o que diz e faz aquele que ensina e o que escuta e recebe aquele que aprende? Estaríamos diante de uma separação binária entre um e outro ou trata-se, desde o princípio, de uma dramaturgia que se compõe em conjunto?

imagem: leon ferrari
Cultivamos por muito tempo a ideia de que existe, entre aquele que fala e o que escuta, uma relação linear e bem marcada de papéis e entendimentos, que atribui ao falante um papel ativo e dominante ao passo que o ouvinte, encenaria o polo passivo, recebendo, ipsis litteris, aquilo que lhe foi transmitido. Depende.
Pode-se falar passivamente, ao modo do papagaio, ao passo que pode-se exercer uma escuta ativa, que filtra e se compõe com aquilo que é dito. Entre falas, escutas e entendimentos, há uma multiplicidade de falantes e ouvintes em nós que frustra, de largada, a expectativa por uma linha de sentido única. O que interessa é justamente encontrar o que se passa entre, no elo-intervalo que se instala neste campo de imanência que é o meio fecundo pelo qual algo acontece .
Praticou-se, por muito tempo, a ideia que aprender era o mesmo que decalcar o já sabido, repetir o já dito, ou copiar o já escrito. Assim, a repetição automática de saberes clichês ainda encontra espaço como métrica das aprendizagens. Respostas prontas para perguntas retóricas são parte de um script de onde emerge certo tipo de dramaturgia escolar, em que os esforços se concentram em comprovar a eficácia das intencionalidades. Aqui, medir, avaliar e sistematizar são as grandes protagonistas de um processo que por sua própria natureza, sempre nos escapa.
Deixemos de lados os rankings e as medições. O que de fato nos interessa habita algum lugar outro, distante das boas intenções e do alcance dos resultados pré estipulados. É pelo meio e no percurso, onde este algo que sempre escapa acontece. Ao contrário da eficácia dos caminhos lineares, são as curvas, o campo intensivo, que se configura como superfície necessária à possibilidade de metabolizar as intensidades e criar novos vetores de passagem àquilo que em nós precisa emergir.
Pois o processo de aprendizagem é também um processo de metabolização: é preciso deixar-se afetar pelo que outro nos oferece - seus gestos, suas vozes, seus fazeres - para que em um encontro ativo e em nada retilíneo, possamos torná-los nossos. Aprender é também um processo corporal: digestório, antropofágico. A parte que o outro generosamente oferece de si será deglutida, apreciada, fruída em diferentes ritmos e intensidades. Tornaremos nosso tudo aquilo que servir e descartaremos o que não nos tocar.
Trata-se de uma alquimia, um feitiço de proporções e ingredientes singulares e irreproduzível, ao qual nenhum mecanismo de controle será capaz de fisgar - se insistirmos nessa linha, nos contentaremos com o mero decalque de palavras de ordem, afinal, os estudantes aprendem rápido a jogar o fatídico jogo da escola.
Entre a parte que o outro nos oferece e a fagocitação de que somos capazes de fazer, algo se passa: o apreender, ou melhor, um aprender, ou ainda, aprenderes. Algo do outro fica em nós, algo que passa a nos compor e no que reside um infinito potencial de criação e variação, pois ao tornar nosso este algo que vem do outro, imprimimos uma maneira própria - de ver, afetar e vice-versa: é sempre uma via de múltiplos sentidos.
Saem de cena os resultados prévios para dar lugar ao entendimento do aprendizado como processo de transmutação. O que está em jogo é a permanente possibilidade de diferenciar de si mesmo, alimentando um ciclo de expansão da vida.
Já não nos servem as medições precisas que regem o saber científico e racionalizante, com suas exigências comprovadas em laboratório, mas a magia dos bons encontros e sua capacidade de ativar nossas camadas potenciais de expansão - essas que geram desejo de ação a partir do que nos toca.
O que faço com isso que agora me afeta? Que destino dou a isso que me mobiliza? A coleção de conceitos cultivada pela tradição escolar já não pode nos ajudar e será preciso inventar novos aliados para dar vazão ao que pedem nossos corpos vibráteis, aos moldes do que faz uma caixa de ferramentas.
Aprender torna-se uma tarefa muito prática, empírica e sensível, caracterizada pela ampliação de nossos modos de estar e atuar no mundo. Sua função primordial é a de acender as chamas da vida, alargar horizontes e multiplicar caminhos.
No espaço difuso que se abre entre o ensino e a aprendizagem cabem tantos sentidos quantas são as formas com que metabolizamos aquilo que recebemos do outro. Para cada corpo, certas afecções, significados e direções e, então, já não falamos de desejar nem de prometer nortes, mas de farejar vielas interessantes.
O que fazemos com aquilo que da vida apreendemos é a própria vida e a arte de bem vivê-la. O que fazemos com a parte que o outro generosamente nos oferece, é nossa própria capacidade de nos tornarmos outros também, diferentes de quem éramos ou supúnhamos ser.
A cada ato de aprendizagem, um exercício de criação - eis aí a metodologia ativa - de modo que o que nos interessa é investir nos espaços entre, nos intervalos e nas possibilidades de tornar o outro algo em nós. Aqui, o processo de aprendizagem é também um ato de variação contínua.






Comentários