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Ficar com o problema

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 4 de out. de 2022
  • 2 min de leitura

O convite, que dá título ao livro de Donna Haraway, publicado no ano de 2016, é de uma atualidade indiscutível. Diante de um problema, ao invés da busca aligeirada por resoluções ao alcance das mãos, ela nos convida a uma certa pausa. Simplesmente, tomar o problema como companhia, até que sejamos capazes de dele extrair o sumo.



imagem: Mathew Borrett


Tendemos a alimentar o desejo por respostas. De preferência as já testadas e certeiras, as já trilhadas. Os bons problemas, no entanto, instauram em nós e no campo uma fissura que nos põe em suspenso, quebrando a linearidade das expectativas e nos obrigando ao movimento.


Quando algo desassossega, o ímpeto é buscar pela estabilidade do estado anterior, onde, bem ou mal, sabíamos como nos conduzir. O bom problema, no entanto, sinaliza para a impossibilidade de uma volta. Diante da fissura, é preciso buscar novas saídas e abrir novos horizontes.


Então, o convite de Donna Haraway mostra-se ainda mais provocador, na medida em que não nos oferece nem um retorno, nem uma resolução rápida ou eficaz. Ele é da ordem da permanência, da duração e de uma certa imobilidade: apenas ficar com o problema.


Bem sabemos que as melhores iguarias levam tempo para fermentar. É preciso durar, prolongar a presença junto ao tempero do tempo, muitas vezes no escuro e em silêncio, para que visões inéditas possam se anunciar. Como diz Manoel de Barros - e Nietzsche, e Freud - repetir, repetir, repetir, até ficar diferente.


Ao ficar com um problema é preciso ter em mente que ele não é só nosso. Na medida em que emergem no campo e perduram no tempo, os problemas se ancoram e se ramificam, criando aproximações e distâncias, necessárias à produção de máquinas de ver mais abrangentes.

É no campo dos encontros que os problemas podem ganhar novas camadas e consistências, povoando-se de multiplicidades e bifurcando-se em novas perspectivas. Aqui, já não se trata da lógica das generalidades, mas dos desdobramentos possíveis que também nos fazem bifurcar em múltiplas e singulares saídas.


Os problemas, então, também se tornam caminhos, na medida em que nos impelem a seguir adiante. Afinal, o que um problema quer de nós é coragem para enfrentá-lo de peito aberto.


Tê-lo conosco, dia e noite, até que ele se torne outra coisa. É que os bons problemas, como a própria vida, não nos abandonam à primeira saída e, se permanecem, é porque também criaram gosto e consistência pela ginga e pelo jogo da vida. É na imanência de cada lance que os problemas ganham e perdem corpo. Repetir, repetir até ficar diferente: os problemas não se esgotam por decreto.


Então nos damos conta que a nós e aos problemas, já não basta que caibamos em resoluções que se pretendam totais. É preciso tomar gosto pela parcialidade de seu desdobrar, o que nos ajuda na capacidade de problematizar a própria vida, alargando seus modos.


É quando, em torno dos problemas, criamos lugares de passagem e uma rede de boas companhias, a partir das quais outras vidas poderão ser imaginadas e produzidas.


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© 2022 Marta Picchioni

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