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Férias, o hiato necessário

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 8 de jul. de 2021
  • 3 min de leitura

Lucy: Pena que as férias de verão só duram 2 meses...

Linus: Para uma pessoa como eu, dois meses é a eternidade!

Turma do Charlie Brown




Muitos de nós já passamos pela experiência de percorrer todos os dias um mesmo trajeto e, de tanto percorrê-lo, tornamo-nos incapazes de ver o que ali se apresenta. Embebidos pelos automatismos do dia-a-dia, nos tornamos míopes, astigmatas, hipermetropes, ou, nos casos mais severos, privados da faculdade de ver.


Daí a importância de, de tempos em tempos, produzir cortes e criar frestas, diferenças que nos provoquem e renovem as lentes, fazendo-nos habitar um intervalo que se interponha ao ritmo cotidiano e possibilite a experimentação de novas maneiras de estar.


As férias são, nesse sentido, uma bela oportunidade para criar essa espécie de estranhamento, que nos permite deslocar o olhar para ver melhor e menor: enxergar os detalhes curtidos pelos temperos do tempo.


Desobstruir os fluxos, descomprometer-se, despentear-se, desativar os alarmes, desligar-se das produtividades, distrair-se com uma folha seca que flutua desavisada pela água da chuva. Tal estado de suspensão, no entanto, não está dado de antemão e sustentá-lo não tem sido nada fácil.


Impregnados pela aceleração da vida, que continua a correr apesar de nós, somos invadidos pela ansiedade por sair de cena, como se corrêssemos o risco de desaparecer ou de sermos tragados pela vida inútil de pura fruição, que já não sabemos cultivar. Hoje em dia, esse tipo de ansiedade tem até nome: FOMO ou fear of missing out, o que move a necessidade de nos fazer presentes como modo de garantir que ainda somos relevantes.


Pois bem. Embora as férias costumem ser esperadas e festejadas, a criação desse intervalo nos compromissos cotidianos está em risco de extinção. É que hoje em dia também os intervalos tem sido colonizados por nossa própria vontade de produzir e se manter na ativa. Assim, experimentar as férias como uma oportunidade de silêncio e reconexão é um exercício que concorre cada vez mais com o desejo de utilizá-la para dar sequência à lógica da produtividade.

Não por acaso, crescem as listas dos dez mais, com dicas de destinos, atrações, restaurantes e programas imperdíveis para se fazer durante este período - isso, sem levar em conta a crescente oferta dos famigerados curso de férias, que terminam por aderir à lógica do atraso e do preenchimento - como se estivéssemos sempre em dívida com um nível de produtividade considerado ideal.


É assim que a sensação de ter uma vida útil passa a impregnar o - pouco - tempo livre de adultos e crianças, que, quando matriculadas nesses cursos, praticamente fazem da escola sua primeira casa e das desejadas férias mais uma, entre o rol das atividades encadeadas e dirigidas que cumprem à risca com a lógica do dever.


Ao contrário da imensidão dos dois meses do Linus, o garotinho da Turma do Charlie Brown, já não sabemos o que fazer com nosso exíguo tempo livre, assim como com o ócio e a ausência das horas marcadas, longe dos meetings & schedules.


Frente à ausência destas marcações, sentimos necessidade não dos temidos hiatos, mas, justamente, da exatidão dos roteiros prescritos ou até dos cursos, que nos manterão confortavelmente atarefados até a vida volte ao normal. A ideia é não se deixar correr o risco de perder-se pelas vielas do imprevisível, apegando-se à segurança dos compromissos inadiáveis que, de quebra, renderão boas narrativas no momento de voltar à labuta.


Sim, entrar em férias é também assumir um risco: o de experimentar outros modos de estar, estabelecendo com o fora e o dentro outros tipos de conexão. Ouvir os sons que nunca escutamos, perceber por quais caminhos passamos, sentir a intensidade dos gostos, sair das redes, deitar na rede, ler um romance, vivê-lo.


Mais que tudo, o que as férias nos oferecem é uma oportunidade de desterritorialização, favorecendo a manifestação do estranho em nós. Que os desejos do corpo possam ser nossos guias.


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