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Habitar mundos, lentificar processos

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 25 de nov. de 2021
  • 3 min de leitura

Aceleração, velocidade, competitividade e eficiência. Valores e atitudes nascidos junto ao contexto industrial moderno, que imprimiu um ritmo maquínico não apenas aos processos produtivos, mas a tantos outros campos de nossas vidas.


Do contexto industrial para cá, é a própria vida e seus modos que se aceleram, introjetando aos tempos do corpo e de seus circuitos um caráter de permanente insuficiência, já que incapazes de fazer frente ao ritmo da máquina.


imagem: Louise Bourgeois



Acelerar a vida, tal como faz Charles Chaplin em Tempos Modernos, requer de nós a adesão a uma certa automatização dos ritmos. Aos poucos, não apenas o trabalho considerado produtivo se acelera, mas também nossa própria maneira de se compor com as atividades cotidianas, relativas aos cuidados mais básicos.


É assim que os campos da saúde, educação e bem estar também passam a se movimentar por princípios de eficiência e resultado, a partir da criação de medidas comparativas que adotam certo nível ideal de desenvolvimento como parâmetro.


Na corrida em direção aos objetivos já traçados, temos a impressão de que as 24 do dia são insuficientes para darmos conta do tanto por fazer. A aceleração dos ritmos se infiltra em todo canto, desde o modo como nos alimentamos à cultura do descarte, que cria objetos com obsolescência programada, retroalimentando o próprio circuito produtivo.


O conceito de fast food, por exemplo, criou práticas e gerou efeitos diretos no modo como nos alimentamos, na medida em que imprimiu valor às refeições rápidas, baratas, preparadas em escala para serem consumidas em qualquer lugar. A ideia é liberar o tempo - essa unidade de medida valiosa - para o realmente importaria: o trabalho produtivo. Será?


Um dos efeitos dessa aceleração desmedida tem sido a negligência acumulada em relação às necessidades do corpo - seja em relação à nutrição ou às necessidades de repouso e devaneio - nos lembrando que toda escolha tem seu preço. Burnout, depressão, desânimo e cansaço são alguns deles.


O corpo reclamando seu tempo usurpado coloca a produtividade a qualquer custo em questão e as práticas de lentificação dos ritmos e dos usos éticos do tempo voltam à pauta. Ainda no campo da alimentação, ganha força, dessa vez, o movimento slow food que, no contrafluxo da ingestão rápida e pasteurizada de processados, defende a volta das refeições simples e caseiras, que valorizam a sazonalidade dos ingredientes e da cultura culinária local.

Aqui, não só o preparo do alimento ganha destaque, como o fato de estar à mesa, que passa a fazer parte de uma micropolítica alimentar que celebra o prazer de cozinhar e de compartilhar os alimentos com outras pessoas, reavivando a ideia de comensalidade.


Tal movimento está em consonância com questões ecológicas e educacionais mais abrangentes, que se associam à produção e consumo de alimentos em todo o mundo e traz à pauta práticas de sustentabilidade e agricultura cooperativa, como alternativas à produção de alimentos em larga escala, pondo em jogo toda uma cultura em torno da produção e consumo.


Embora surgido no campo da alimentação, o movimento slow defende a necessidade de esticar os tempos dedicados às mais variadas tarefas cotidianas, afirmando a necessidade de desacelerar processos, de modo a dar vazão aos ritmos e necessidades de nossos corpos. Sua influência na educação afirma a necessidade de preservar os tempos da infância como um período que não se destine a antecipar demandas próprias do mundo do trabalho, por exemplo.


A ideia aqui é que não há pressa em "chegar lá”, pois o foco de nossa atenção se desloca das finalidades últimas para as trajetórias múltiplas, permitindo que se tome parte dos processos e que se desfrute de seus desdobramentos. Tal argumento nos convoca a experimentar períodos de silêncio e espaços vazios, para que as ideias em circulação possam decantar com tranquilidade - condição básica para a produção de um pensamento próprio.


Em tempos de hiperconexão e de aprendizagem em rede, lentificar processos torna-se ainda mais desafiador, mas, como na fábula da lebre e da tartaruga, é preciso ter em mente que a lentidão é também uma modalidade de movimento, ainda que não se pretenda dominante nem hegemônica, já que seu objetivo não é ver quem cruza primeiro a linha de chegada.


Aqui, o ato de caminhar sobrepõe-se à expectativa de chegar e a lentidão remete-se à conquista de um tempo necessário, que já não serve às marcações do relógio, mas volta atenção aos sinais do percurso, onde os processos passam a durar o tempo que for preciso para produzir seu próprio esgotamento.


Tal filosofia nos pede uma maior disponibilidade às relações e acontecimentos em curso, na medida em que atentamos aos ritmos próprios e também aos dos outros.


O sabor e o saber. Voltamos à máxima que diz que alimento e aprendizagem compartilham de uma mesma etimologia. Saber o mundo, saborear a experiência, ações que exigem tempo e entrega para que os processos possam ser vividos em toda sua complexidade e inteireza, contribuindo para a invenção de percursos mais autênticos.



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