Jogos de tabuleiro e a produção de narrativas de vida
- Marta Picchioni
- 9 de dez. de 2021
- 4 min de leitura
Dia desses, observava um grupo de crianças, entre 9 e 11 anos, que jogava, animado, o Jogo da Vida, da Estrela. As crianças, reunidas em torno de um jogo de tabuleiro, de que se ocupavam com autonomia. Mas o que me chamou a atenção, foi a narrativa ali proposta, que tantas vezes também fez parte de minha própria infância - sim, o Jogo da Vida é antigo!

O jogo se apresenta como uma combinação de elementos lúdicos, próprios a todos os jogos, e os desafios da vida real, numa espécie de preparação ao que estaria por vir. Seu enredo se desenrola em torno de uma trilha que simula o que seria uma trajetória de vida, com forte ênfase no sucesso financeiro, onde o grande vencedor é aquele que, ao final, torna-se um milionário, ou acumula mais capital que seus oponentes.
Logo no início, cada participante recebe um carro com o qual percorrerá toda a trilha - o Jogo da Vida pressupõe o automóvel como meio exclusivo de locomoção. Para o condutor do veículo há duas opções de pinos, os famigerados rosa ou azul, conforme o gênero do jogador. Antes de iniciar a partida, todos recebem um montante em dinheiro e um cartão de riqueza, que funciona como uma espécie de sorte ou azar, já que pode servir tanto para dividir os lucros como as despesas ou, ainda, funcionar como um cartão de isenção. Aqueles mais precavidos podem comprar o seguro do carro logo na largada e todos os pagamentos e negociações devem ser feitos com cartão de crédito.
Em tese, o jogo resolveria a questão da meritocracia, fazendo com que todos os jogadores partissem em iguais condições. Assim, depois de dada a largada, será uma combinação de sorte e tomada de boas decisões, as responsáveis pela vitória ou derrota dos competidores.
Ao girar a roleta para determinar quem começa, todos devem escolher entre o chamado caminho dos negócios, com um salário de $12.000, ou o caminho da faculdade, que é mais demorado, mas garante ao jogador um salário maior, a partir de $16.000, a depender de sua formação. Também aqui a narrativa é clara: os estudos nos ajudariam a ser “alguém na vida”.
Do ponto de partida à linha de chegada, está tudo lá: o dia do casamento, a hora de ter filhos - e a compensação financeira pelos dois eventos, já que o jogador recebe uma quantia em dinheiro a cada vez que investe em seu capital familiar -, o dia da sorte e o da vingança e, finalmente, o dia do juízo, quando os jogadores pagam todas as suas notas promissórias, caso as tenham. Depois disso, revela-se o grande vencedor: aquele que acumulou posses o suficiente para ostentar o status de milionário - ou de magnata, quando num golpe de sorte, arrisca todos os seus bens na roleta.
Como vemos, tal Jogo da Vida incita a produção de certo modo de viver, próprio da cultura capitalista e meritocrática, na medida em que reafirma, a cada lance, a narrativa individualista do sucesso pautado do acúmulo de bens e ressalta a competitividade excludente como valor a ser perseguido.
Produto da indústria cultural de nosso tempo, poderíamos apostar que seu cancelamento resolveria o problema, mas sabemos que a realidade é mais complexa e não é cancelando um jogo que mudaremos a engrenagem de produção de desejo orquestrada por dada sociedade.
Trata-se, portanto, muito mais de problematizar sua narrativa trazendo-a “para jogo” e de apontar para a necessidade de criar outras modalidades e variedades de jogos e brincadeiras que possam povoar o imaginário e os desejos das novas gerações.
Como contraponto à trilha única rumo ao sucesso financeiro, trago o exemplo dos jogos de Mancala, originários do continente africano, mais precisamente do Egito e que, atualmente, são conhecidos e jogados em todos os continentes.
Esses jogos possuem pequenas variações entre si e de cultura a cultura, mas no geral são jogos de estratégia relacionados à ideia de semeadura, já que simulam o processo de semear, passando pela germinação das sementes na terra, seu desenvolvimento e, então, a colheita.
Em seus primórdios, o Mancala relacionava-se aos ritos sagrados de seus povos e suas partidas eram restritas aos líderes e sacerdotes. Hoje em dia, o jogo se popularizou e na maioria dos países, perdeu seu caráter ritualístico, sendo considerado um jogo de estratégia que exige agilidade de pensamento para que se possa fazer boas jogadas..
Algumas variantes do Mancala são tidas como tão ou mais complexas do que o xadrez, uma vez que a configuração do tabuleiro se atualiza a cada jogada. Outro aspecto interessante é que seus tabuleiros podem ser produzidos pelos próprios jogadores, a partir de materiais de uso cotidiano como caixa de ovos, argila e sucatas em geral - ou mesmo cavando pequenos buracos sobre uma superfície de terra.
As peças utilizadas no jogo são sementes de feijão, milho ou pequenas pedras que são transferidas de uma casa a outra, conforme a estratégia de cada jogador. O objetivo final é capturar mais sementes que seu oponente - sinal de boa colheita - e, então, começar tudo outra vez.
Se cada jogo ou brincadeira emerge de um contexto cultural próprio, entendemos que eles não apenas dialogam com os modos vidas de vida ali presentes, como são agenciadores do processo de produção e sustentação de determinadas narrativas e modos de ser. A ideia é, portanto, conhecer e fomentar o acesso às mais variadas possibilidades de jogos e brincadeiras, investindo em narrativas múltiplas e plurais, desde cedo.
E, principalmente, que possamos oferecer condições para que as crianças inventem seus próprios enredos, sem se contentarem só com aquilo que temos para lhes oferecer. É preciso lembrar sempre: as brincadeiras podem emergir de todo canto e vida pode muito mais!!
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