top of page
Buscar

Maid e o fio da vida - o que significa dizer que a arte salva?

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 28 de out. de 2021
  • 4 min de leitura

A nova série da Netflix, Maid, é um sucesso na medida em que abre campo para olharmos para as relações que ali se passam sob múltiplas perspectivas. Além das bem exploradas relações de abuso, transcorridas no ambiente doméstico, podemos percorrê-la sob outras camadas, fazendo uso de lentes macropolíticas e interseccionais, que nos permitem pensar os atravessamentos de gênero, raça e classe, até aquelas que enfocam caminhos mais subjetivos e que apontam para as transformações que assistimos nas vidas de cada um dos personagens.

Dito isso, o que em Maid salta aos meus olhos, é a possibilidade de retomar o fio da vida e, mais do que isso, da necessidade de o fazer.


imagem: Adriana Varejão



A série nos transporta ao cotidiano de sua personagem principal, Alex, que lá pelas tantas chega, literalmente, ao fundo do poço - embora não se contente em nele permanecer - por uma sucessão de acontecimentos que vão se desdobrando ao longo dos episódios.


Neste lugar desértico em que se encontra e onde tudo parece lhe escapar das mãos, há algo que insiste em conectá-la à superfície, algo que a chama para a vida, um fio de voz , um brilho que a convoca - e também a nós - para fora da toca e para aquilo que se desenrola enquanto Alex, após muita luta, se encapsula em algum canto escuro e inacessível, dentro de si mesma.


Cair fundo para reencontrar suas forças. Que seja um fio, um lápis e seu caderno. Aquilo que nos faz lembrar que a vida nunca deixou de pulsar.


Há na trama uma linguagem que se põe em jogo e que coincide com um dos ensinamentos mais preciosos enunciados por Paula, a artista outsider e meio amalucada que é também mãe da protagonista. Com extrema dificuldade para se enquadrar nas burocracias da vida cotidiana, é ela quem sabe do mais importante: é pelo fazer de todos os dias que sustentamos o fio da vida. Assim, mesmo diante dos enredamentos e dos sucessivos tombos em que se envolve, ela insiste em continuar, na mesma medida em que é capaz de bancar as consequências de seu modo pouco convencional de ser e estar no mundo.


Uma das cenas mais interessantes mostra seu diálogo/monólogo diretamente com a luz do sol, de onde provém toda a fonte da vida que vale a pena ser vivida: aquela que inventamos para nós mesmas. A vida, afinal, acontece diante dos elementos que se apresentam no aqui e agora, a linha de superfície que não cansa de se atualizar.


Talvez, por isso, Alex se preocupe tanto com a escola em que precisa deixar sua filha para que possa dedicar-se ao trabalho de limpar casas - e como cada uma dessas casas revela seus mundos inexplorados e uma oportunidade singular para que a protagonista crie seu próprio enredo.


A escola, longe de ser um lugar apenas de guarda, apresenta um mundo onde uma série de linguagens e encontros poderão ser experimentados: histórias, pinturas, brincadeiras, convívio. Um lugar onde as afinidades potenciais de cada um serão despertadas para que sua capacidade de criar mundos comece a tomar corpo.

Aqui, a ideia de que haja uma arte capaz de nos salvar da aridez da vida cotidiana ganha abrangência e amplitude. O que é a arte, afinal, senão a capacidade de nos colocar em movimento e de nos abrir a possibilidade de criar caminhos e abrir perspectivas?


Outra vez, é Paula, a mãe, quem afirma o fazer artístico como expressão necessária, para além das garantias de sucesso, reconhecimento, fama ou poder. Ao contrário disso, ela ocupa o lugar marginal destinado às loucas e aos desajustados, os que não deram certo na vida, ao passo em que sustenta viver em um estado de experimentação radical, um meio absoluto que reconhece o valor do processo, com todas as suas dores e delícias.


Fazer da própria vida uma obra de arte significa praticar o cuidado de si. É só a partir daí que podemos criar sentidos realmente autênticos, fazendo uso das linguagens que temos à mão. Paula pinta e esculpe. Alex se afina com a escrita.


Aqui, é importante que se reconheça: não importa de que tipo de linguagem faremos uso, todas elas se relacionam de algum modo com os fazeres escolares, na medida em que são social e culturalmente aprendidas e ensinadas.


Este é um importante sinalizador desta série: estar em família já não basta. Educar é uma tarefa coletiva e que se opera em rede.

Em Maid, ao contrário de um porto seguro, a família é ambiência de encontros despotencializadores e produtora de mal estar e desamparo, o que também nos serve de alerta: às vezes, é preciso abrir mão de certos lugares e de conceitos absolutos para reconhecer e afirmar os modos como as relações se dão na prática, pois só então será possível superá-las.


As relações abusivas em família nos falam da ambivalência entre os contornos dos corpos e das subjetividades em jogo, onde, muitas vezes, uns tornam-se a extensão do desejo de outros e cada um passa a existir para atender a certas expectativas previamente traçadas. Em Maid, as relações em família se constituem pela falta, num pacto silencioso que rebaixa a todos diante do que pode e pede a vida. Alex também não escapa à reprodução deste enredo, na medida em que espera dos outros - da mãe, do ex-marido, do pai - que sejam conforme seus ideais - algo que, de largada, eles não podem lhe oferecer.


Para todos, é interessante notar, o fio da vida vem sempre de outro lugar. A marcenaria, para o jovem ex-marido; a religião e a posição de conselheiro para o pai, ex-dependente químico; a escrita e os estudos, para Alex. É o fora trazendo e afirmando linhas de fuga e de forças, para além do mundo apequenado que se tornaram todas as casas, tão cheias de objetos e quinquilharias que mal podemos avistar onde estão seus moradores.


É preciso, literalmente, submergir ao fundo do poço para sair dele mais forte, capaz de caminhar com as próprias pernas. Cartografar seus passos desviando da lógica de uma eterna dívida com relação ao passado, pois, se de fato o fora nos abre mundos e nos apresenta saídas, a efetividade das ações aí empreendidas só pode partir de cada um de nós.


Se Maid escolhe os abusos como tema central, ela fala também sobre nossas co-responsabilidades diante daquilo que nos acontece. É preciso superar o par dicotômico abusador/abusado para que se torne possível tecer outras narrativas.


Criar caminhos é a tarefa. Única e intransferível. Em última instância esta é a obra maior: esculpir a própria vida como obra em aberto.


Comments

Couldn’t Load Comments
It looks like there was a technical problem. Try reconnecting or refreshing the page.

© 2022 Marta Picchioni

bottom of page