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Maternidade sob tensão!

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 3 de mar. de 2022
  • 4 min de leitura

Atualizado: 8 de mar. de 2022

Nascer, crescer, reproduzir e morrer. O que há pouco tempo parecia ser apenas o fluxo natural da existência, hoje soa mais como uma orquestração para manter os sujeitos e seus corpos desejantes sob as rédeas curtas do controle e da reprodução social. Se tal cartilha do bem-viver vale para todos, a questão se acentua quando nos referimos às mulheres e à questão da maternidade: a fábrica por excelência de novos corpos, sem a qual o futuro da espécie está em jogo.




imagem: Gustav Kimt



Uma profusão de filmes, livros e artigos têm sido produzidos acerca deste tema, o que nos mostra que a visão estritamente natural da maternidade já não satisfaz. Ao que tudo indica, é preciso encontrar as engrenagens produtoras da experiência contemporânea de maternar, o que pode nos ajudar a entender quando e como foi que ser ou não ser mãe se tornou um grande problema.


Numa sociedade em que boa parte do conhecimento sempre foi produzido por homens nascidos no continente europeu, a questão que recai sobre a geração de novos corpos não pode ser mais urgente. Muitas mulheres vêm ocupando a cena acadêmica e trazendo para o palco perspectivas inéditas. Silvia Federici, pensadora italiana, é uma delas. Com seus estudos sobre a caça às bruxas no início da era moderna, ela vem nos mostrar como a desvalorização da experiência da maternagem foi uma construção da sociedade capitalista e não um legado anterior a este contexto.


Isso porque, se a divisão do trabalho por gênero já existia desde antes, a atribuição de valor ao trabalho produtivo em detrimento do reprodutivo - como ela nomeia o ato de re-produzir a própria espécie - instaurou um abismo na posição social ocupada por homens e mulheres, desde então.


Como bem sabemos, sendo o trabalho reprodutivo não remunerado - em uma sociedade que atribui valor às atividades desempenhadas por meio do dinheiro - criaram-se as condições para que a dominação masculina sobre as mulheres se acentuasse, não como uma condição natural, mas como efeito de um jogo de forças necessário para o pleno funcionamento da sociedade capitalista.


O domínio territorial investe na criação de fronteiras e produz passaportes que dão ou não acesso aos corpos e à terra, agora completamente setorizados. Passamos a sentir na pele os sinais de esgotamentos desse modo de subdividir o mundo, das quais a crise em torno da experiência da maternidade é uma das pistas.


Se olharmos atentamente, no entanto, veremos que os sinais de esgotamento desse tipo de modelo cindido estão por toda parte: das relações de trabalho à exploração desmedida dos chamados recursos naturais, das inacreditáveis guerras por domínio territorial e econômico à colonização dos desejos.


Diante desse cenário, a adesão das mulheres ao discurso emancipatório, fabricado no cerne do próprio capitalismo, também parece já não bastar. Nesta lógica, a ascensão a elevados postos de trabalho seria suficiente e desejável para igualar homens e mulheres, embora saibamos que isso não resolve a questão do trabalho reprodutivo, ainda sob a responsabilidade de alguém, muito provavelmente uma outra mulher.


Logo vemos que a temática é bem mais complexa do que aparentava à primeira vista, e o problema da maternidade já não diz respeito à escolha ou satisfação individual das mulheres em seus papéis de mães ou trabalhadoras, mas a toda uma engrenagem de produção de desejo, necessariamente atravessada por questões de gênero, classe e raça.


Se historicamente o trabalho reprodutivo ficou a cargo das mulheres, sabemos que a tarefa da transmissão geracional acontecia de modo coletivo e gregário - e não às custas de sua subvalorização.


Hoje, no entanto, quando pensamos na educação dos mais novos, a frase que mais ouvimos diz que é necessária uma aldeia inteira para se educar uma criança. Trata-se de um provérbio originário do continente africano, o que à primeira vista nos parece um avanço, na medida em que valoriza e agrega saberes produzidos por outros povos e que vem das experiências vividas, e não necessariamente do fazer academicista.


Não é preciso ir muito longe, no entanto, para percebermos o tipo de uso que temos feito desses saberes ancestrais, tornando-os mais um slogan ou uma palavra de ordem, do que um investimento real em práticas de aldeia.


Voltando à maternidade - esta que nos parece enfadonha, difícil e sempre insuficiente - talvez seja preciso nos ater com minúcia à questão das engrenagens que polarizam a experiência, como se tratasse de uma escolha entre maternar ou trabalhar, apontando para um desejo que estaria sempre em outro lugar.


Ao que parece, a opção por uma ou outra alternativa nasce e se alimenta do mesmo solo infértil: a produção de um desejo já dado e reativo, na medida em que deve optar por caminhos únicos e já determinados - fundamentais para a manutenção da estrutura vigente.


Talvez, então, a questão já não seja optar por um ou outro papel social - ou alimentar a culpa por nos achar insuficientes para qualquer um deles. Talvez, seja o caso de deslocar a discussão para o foco no desejo, investigando o modo como nos relacionamos com a ideia de plenitude e sucesso - e percebendo, de largada, como somos capturadas pelas narrativas da mulher emancipada e bem sucedida como o mais almejado objeto de conquista.


Talvez, então, já não nos interesse saber se seremos mães ou trabalhadoras de sucesso, mas tão somente dedicarmo-nos à criação de caminhos interessantes para uma vida que valha a pena ser vivida, não necessariamente anunciada.


Aqui, talvez, o fundamental já não seja pleitear o direito à igualdade mas, quem sabe seu exato oposto: o direito à pura diferença.


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© 2022 Marta Picchioni

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