O Infantil que nos convoca
- Marta Picchioni
- 6 de mai. de 2022
- 2 min de leitura
Pegamos o telefone que o menino fez com duas caixas de papelão e pedimos uma ligação com a infância.
Millôr Fernandes
A infância é o tempo e o lugar onde tudo começa.
As primeiras sensações, os primeiros passos, as primeiras palavras, os medos, as descobertas, as afinidades, os tombos, as conquistas. O intervalo onde um vasto campo de experimentação e brincadeiras se abre.

Dentro do grande ovo que choca a infância, tudo podemos e múltiplas são as direções a serem tomadas. O alto grau de indeterminação afirma a plasticidade que nos constitui. Tantas podem ser as línguas e as linguagens, os corpos e os gostos que, depois, viremos a chamar de nossos, num gesto típico de apropriação.
Então, nos embrenharemos pelas trilhas das escolhas, algumas feitas com a cabeça, outras com os pés. Criaremos caminhos únicos, passando a nos reconhecer como um “eu” com nome e corpo próprios, com desejo de nos conectar com quem nos sentimos mais fortes.
Mais tarde, provavelmente nos afirmaremos em uma profissão, adquiriremos um estado civil, talvez tenhamos filhos, sobrinhos, talvez gatos ou cachorros e, em meio a um misto de acasos e intenções, a criança que fomos ainda estará lá, em algum lugar dentro da gente.
Que tipo de criança nos habita?
Ela está reivindicativa ou contente?
Aprendeu a se divertir com aquilo que fizemos de sua vida? Ou talvez se ressinta do que não pôde ser?
Será que lhe permitimos experimentar o mundo por tempo suficiente?
Ou lhe apresentamos respostas antes mesmo que as pergunta pudessem ser formuladas?
Será que ainda é tempo para brincadeiras?
Será que a criança que nos habita desejou corresponder às expectativas que tínhamos para ela? (Será que lembramos de lhe perguntar?)
Ou foi daquelas que faz o tipo “do contra”, seguindo o avesso dos conselhos que lhe pudemos dar?
Talvez nossa criança tenha comido demais e ainda assim tenha dormido com fome.
Será que reclama mesmo sem saber que fome tem?
A criança resiste em algum lugar, como um germe à espreita e sempre pronta a se apresentar.
Quando acorda, talvez, coloque-se imediatamente ativa na brincadeira, nos fazendo lembrar de como era divertido dançar na chuva, quando chovia ou fazer jogos de sombra quando o sol estava a pino.
Mas pode ser que ela acorde de mau humor - e que tenha seus motivos para reclamar. Quem sabe, sinta que não foi ouvida, e que, mesmo passados tantos anos, ela ainda esteja lá, naquela tarde interrompida antes que tivesse chegado a hora do fim.
Pois a infância tem seu tempo próprio, o tempo de permanecer ovo, numa gestação extra útero, até que a casca se quebre quando o desejo de correr mundo torne-se maior do que o de ficar.
E pra que mundo correu nossa criança? (ou será que foi andando, ou nadando? ou que ficou parada?).
Será que temos permitido às nossas crianças que descubram por si próprias por que mundo ir, e em qual ritmo?
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