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O que quer uma criança?

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 7 de jan. de 2021
  • 4 min de leitura

Atualizado: 15 de mar. de 2021

Cena de praia: três crianças, por volta de cinco anos, provavelmente irmãs, talvez trigêmeas, se concentram em fazer um castelo. A brincadeira consiste em experimentar a textura da areia molhada pelo mar, deixando-a cair em gotas, umas sobre as outras, de modo que o castelo era puro efeito desse gesto. Passado algum tempo, aproxima-se um sorveteiro. Duas das crianças correm para o guarda-sol, onde estão sentados os adultos da família, para pedir sorvete. O vendedor, percebendo o movimento, vai atrás. Enquanto isso, a terceira criança continua concentrada no gesto de fazer pingar a areia, alheia à euforia dos irmãos.




Neste breve intervalo de tempo, junta-se a ela e ao castelo, uma outra criança, cujos pais não estão à vista mas que, intuímos, devem estar trabalhando em alguma das barracas perto dali. As duas meninas começam imediatamente a interagir, quando os irmãos da primeira se aproximam, chamando-a para pegar seu sorvete. Esta corre animada, enquanto a outra, que chegou depois, continua a fazer o castelo.


Ao retornarem à cena da brincadeira, com seus sorvetes em mãos, trazem um para a menina que se aproximou. Ela parece meio sem jeito diante do picolé, mas abre o pacote mesmo assim, dá uma pequena lambida e mais nada. Continua a fazer o castelo, aproximando perigosamente o picolé da areia, sob os olhares apreensivos dos três, que lhe sinalizam o descuido.


Depois de um tempo com o sorvete em mãos e meio sem saber o que fazer, passa intencionalmente um pouco de areia nele, como para dizer que está sujo, arrumando um pretexto para não ter de comê-lo. Finalmente, cansada de ocupar-se em segurá-lo, enterra-o de uma vez por todas na areia, livrando-se do incômodo sob o olhar incrédulo dos irmãos que, por seu lado, se deliciam com seus próprios.


Fiquei dias com essa cena na cabeça. Um presente e tanto, daqueles que nos dão a oportunidade de acompanhar o desdobramento de um acontecimento inusitado. Foi a primeira vez que testemunhei uma criança enterrar na areia um picolé inteirinho e é aí que a cena se abre para muitos questionamentos.


A ação da família, supostamente gentil e generosa, traz consigo uma boa oportunidade para pensarmos, por exemplo, na associação direta entre criança e sorvete, como se apenas o fato de ser criança as colocassem em um lugar de quem não recusaria a oferta. E como se as crianças fossem todas iguais, em gostos, fomes e temporalidades.


Voltando à cena inicial, não passou despercebido o fato da vontade de sorvete ter partido de apenas duas, das três crianças que brincavam. A resposta, no entanto, veio em bloco: picolés para todos e de um mesmo sabor.


É como se os adultos tomassem o gosto de seus filhos como parâmetro universal, de modo que a criança que se aproximou para brincar também foi contemplada com um picolé, sem que ninguém lhe perguntasse o básico: você quer um picolé? de que sabor?

A ideia de não fazer diferença no tratamento dado aos filhos - e às crianças em geral - supostamente está a serviço de cuidar para não diferenciar a quantidade de amor ou oportunidades destinadas a uns e outros. Acontece que as pessoas são diferentes. Mesmo sendo irmãs, mesmo sendo gêmeas ou trigêmeas e tratá-las de modo genérico ou igualitário - o mesmo para todos - não deixa de ser uma forma de produzir invisibilidade.


É mais comum do que se pensa medir as ocorrências da infância pela régua utilizada com nossos filhos. Mas, então, perdemos de vista que as crianças são também e, desde cedo, pessoas únicas, que diferem entre si e inclusive delas mesmas.


Um exemplo clássico é observar as relações que se estabelecem entre a mesma criança no ambiente doméstico e no escolar. Ela não fará as mesmas coisas nem se comportará do mesmo modo, justamente porque as possibilidades de se relacionar e de experimentar, num e noutro lugar, serão outras. E é importante que seja assim.


Constituir-se como um sujeito é um processo lento e dinâmico. Para tanto, é importante que as crianças possam se experimentar em diferentes contextos, aprendendo a manifestar, a partir da experiência, seus gostos, preferências e aversões.


Daí que a prosaica cena da praia nos fornece elementos preciosos para pensar. É preciso que nós, adultos, deixemos de supor o que quer uma criança, apenas pelo fato de ser criança ou porque outras o desejam, como se fossem extensões umas das outras.


E é bom lembrar que nem sempre o (não) querer se verbaliza. A menina que enterrou o seu picolé, por exemplo, agiu. Ela se livrou de seu presente de modo bem concreto, fazendo-o desaparecer na areia da praia, mostrando em ato que seu desejo não estava ali e que ela não o aceitaria apenas “por educação” ou por algum tipo de convenção social.


Seu gesto nos ensina.


É preciso que o levemos a sério e pensemos duas vezes antes de tratar a manifestação do desejo de um como pretexto para barganhar desejos em massa, contribuindo, dessa forma, para o inflacionamento do vasto mercado das produções desejantes, com enunciados do tipo: pague 2 leve 4, pague só mais um real e ganhe a versão plus advanced.


A menina disse não.


É preciso que nos coloquemos numa posição de escuta e de investigação, para não aderirmos automaticamente ao mercado da produção de desejos em massa, que nos incita ao consumo irrefletido. É preciso desconstruir suposições como, por exemplo, aquela que associa infância a tudo que é doce e, por extensão, captura o desejo das crianças, desde cedo, direcionando-o ao caminho mais óbvio e pré estabelecido.

O querer de um não se estende aos demais.


Assim, afirmar a possibilidade da diferença, todos os dias, é tarefa fundamental. Permitir, inclusive, que a criança difira dela mesma, podendo testar-se e experimentar gestos, gostos e desgostos, sem cobrar por uma coerência diante de um ser que se abre ao mundo e experimenta a possibilidade de exercitar sins e nãos para o que a vida lhe oferece.


Aprender, desde cedo, que nem todas as ofertas valem a pena, e que nem tudo que é de graça, sai barato.




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