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Parentalidade positiva e a polarização da experiência

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 25 de fev. de 2021
  • 5 min de leitura

Atualizado: 15 de mar. de 2021

Não muito tempo atrás e ainda hoje, exalta-se o pensamento positivo como uma maneira de atrair as boas vibrações do universo e afastar as más. Nesta esteira, surge a psicologia positiva, seguida da disciplina positiva e, finalmente, da parentalidade positiva, todas orientadas pelo princípio de que as boas ações, empreendidas desde cedo, são também geradoras de boas atitudes e de um maior grau de felicidade.



Passamos a operar, em muitos campos do conhecimento, pela polarização de opostos. A positividade, em oposição ao que seria o lado negativo, foi o polo eleito e imperativo dos nossos tempos, que aparece sempre associada à busca por relações mais prazerosas, leves e horizontais.


Um dos princípios da parentalidade positiva é a combinação entre firmeza e gentileza. Dessa forma, aconteceria a fixação de limites bem demarcados, ainda que não de modo violento. Saem de cena o castigo, a punição e a relação assimétrica com a autoridade - velhos aliados da educação tradicional - e, em seu lugar, entra a educação pautada pelo afeto. Basicamente, ao que parece, trata-se de uma mudança na forma, pois, também aqui, os pais continuam a dar limites aos seus filhos.


Sugiro portanto, uma breve digressão. O uso do termo parentalidade surge para resolver uma questão jurídica e de gênero. As configurações familiares se multiplicaram ao longo do século 20. Assistimos a formação de inúmeros tipos de famílias: as nucleares tradicionais, as monoparentais, as homoafetivas, as reconfiguradas, as estendidas. Qualquer que seja o arranjo em cena - e independente do gênero dos adultos envolvidos em cada um deles - é preciso garantir que a parentalidade seja exercida a contento, ou seja, que as funções de acolhimento e interdição, anteriormente descritas como funções materna e paterna, ainda que possam ser exercidas por pessoas de qualquer gênero e não necessariamente pelo pai ou pela mãe, sejam desempenhadas. O termo parentalidade, portanto, dialoga com as necessidades dessas novas configurações e significa exercer, junto os mais jovens, a função educativa em todas as suas nuances.


Faz parte do exercício da parentalidade o acolhimento e a interdição. Os limites ou linhas de contenção serão invariavelmente impostos de fora para dentro e, por mais que haja um esforço por afirmá-los de modo horizontal e dialogado, como propõe a parentalidade positiva, ainda assim trata-se de uma imposição e, como tal, pode ser vivida por aquele que a recebe como uma forma de violência.


Por mais que nos esforcemos em criar regras sem nãos, as regras por si só falam de uma interdição, de um não, que tem suas razões de ser e pode ser explicado ou argumentado, mas ainda assim será um não.

Para ficar nos exemplos mais básicos: escovar os dentes, tomar banho, se alimentar de maneira saudável, não são regras passíveis de negociação e o exercício da parentalidade também está em afirmar essas linhas de força externas e necessárias, para além da vontade ou da cooperação da criança e, por isso mesmo, podem ser vividas como uma violência, na medida em que interrompem o fluxo contínuo dos desejos imediatos.


Fica claro que ao pensarmos na relação entre adultos e crianças, não há horizontalidade possível, pelo simples motivo de que os primeiros são responsáveis pelos segundos e, portanto, sua função em relação a eles é assimétrica por definição. Trata-se de uma condição estruturante.


Por tudo isso, entendo que ao propor uma parentalidade positiva, acabamos por privilegiar um dos polos da experiência humana que, de todo modo, é sempre integral. Ao sermos pais ou mães, trazemos à cena tudo aquilo que somos - nossa integralidade - e será a partir do encontro entre estas pessoas singulares - esta mãe e esta filha, este pai e este filho - que a tarefa educativa se desdobra. No terreno da experiência educativa, as cartilhas são contraproducentes na medida em que retiram de cada pai e mãe seu próprio saber e modo de fazer para incutir-lhe outro, terceirizado, encomendado, padronizado.


Se acreditamos que a educação se dá pela via dos afetos, é importante garantir espaço para que os mesmos possam emergir. Mas aqui vale uma ressalva fundamental: afeto diz respeito a tudo aquilo que nos afeta, ao que nos atravessa, e em nada se assemelha a ideia de sentimentos positivos de amor universal. O ódio, a raiva e tantos outros sentimentos pouco valorizados são também afetos e devem ter seu espaço nas relações humanas.


Àqueles que buscam na experiência da parentalidade o puro prazer e a leveza de bem criar seus filhos, segue um alerta: não é disso que se trata. Educar é tarefa árdua, cansativa e por vezes extenuante. É preciso paciência, persistência e generosidade para errar e acertar. O acerto em uma circunstância não se converte automaticamente em regra para as demais. No terreno das relações humanas, não há regra que sirva para todos, é preciso disponibilidade para traçar os caminhos próprios de cada relação e circunstância.


A parentalidade, portanto, não pode ser positiva nem negativa, ela é o que é, uma experiência real e sem garantias, cheia de altos e baixos e de percalços, como toda relação.


O problema da defesa de uma parentalidade positiva - e mais ainda, da criação da figura de um educador parental! - é que subtraimos das pessoas reais e singulares seu próprio saber fazer, inculcando-lhe mais um ideal. Fazemos parte de uma sociedade que nos impõe corpos, estéticas e modos de vida ideais, portanto, não seria a parentalidade a ficar de fora dessa lógica. A parentalidade positiva, tal qual a ideia de cultivar pensamentos positivos, está a serviço da criação de modelos ideais e idealizados de ser pais e mães, que se distanciam de nossa experiência prática: mais imperfeita, mais errante e mais verdadeira também.


Não posso deixar de pensar na inestimável contribuição do pediatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott ao criar, na década de 1970, o conceito de mãe suficientemente boa. Ao transpormos este conceito para a ideia de uma parentalidade suficientemente boa, teremos a justa medida do que se espera de nossa ação junto aos mais novos: nem de menos, nem demais, apenas o suficiente.


Os adeptos da parentalidade positiva, no entanto, estão muito além dessa boa medida ao prescreverem um modelo educativo em que a vida de todos gira em torno dos filhos, de modo que estes se convertem em um grande projeto de futuro dos próprios pais. Vale lembrar que, junto a tanta atenção e dedicação, se avizinha a vontade de manter-se no controle.


Já uma educação para a autonomia, prepara os filhos para o mundo tal qual ele se apresenta, com todas as suas polaridades, com as dores e delícias, os tombos e as conquistas. Não um mundo positivo, apenas um mundo, que por vezes é também violento e frustrante.


Criar para a autonomia é poder sustentar a ambiguidade daquilo que nos afeta e que também passa pela experiência da parentalidade. Nesses termos, a ênfase na experiência positiva, não apenas é uma ficção, como uma tentativa de parcializá-la.


Que tenhamos mais tranquilidade para sermos os pais e mães que podemos ser, sem a preocupação em seguir cartilhas nem corresponder a modelos prévios, pois a parentalidade, antes de ser positiva, é uma jornada ativa e integral. Ela é construída dia após dia, de maneira única e a partir de relações também únicas e requer de nós, tão somente, presença e persistência.


Que aprendamos a abrir mão dos ideais para sustentar nossas próprias angústias e frustrações ante a tarefa educativa que, como dizia Freud, compõe, junto à ação de governar e de psicanalisar, um dos três impossíveis.


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