Por que não posso ter um iPhone se a Fulana tem?
- Marta Picchioni
- 17 de dez. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 15 de mar. de 2021
Cedo ou tarde ouviremos de nossos filhos esse tipo de questionamento. É um clássico!
Escuto nitidamente a resposta, também clássica, dada por minha mãe, diante de tantas situações semelhantes a esta: e se a Fulana se jogar da janela, você se joga também?
Óbvio que não!

As crianças sabem muito bem em que tipo de situação usar tais ou quais argumentos. É uma questão de aprendizado e conveniência que, muitas vezes, pegam os adultos de surpresa, de modo que também eles ficam sem saber o que dizer, para além da tal comparação improcedente com a janela.
Ao se comparar com os amigos, as crianças lançam mão de um argumento sofisticado: sabem que pertencem a um grupo e que o pertencimento diz respeito também a certos tipos de ações e práticas compartilhadas. Logo, se Fulana e eu fazemos parte de um mesmo grupo, por que eu também não posso ter as mesmas coisas que ela?
A pergunta é legítima e a resposta, embora seja simples, atravessa algumas camadas de argumentação e compreensão. Vamos a elas.
Primeiro, porque pertencer a um grupo não significa mimetizá-lo. Um grupo não é uma unidade coesa e uniforme, ele compreende singularidades e diferenças. Portanto, fazer parte ou pertencer a um grupo não significa aderir de maneira inequívoca a todas as suas práticas.
Outro ponto diz respeito ao iPhone propriamente dito. Sabemos que cada família terá seus próprios critérios, mas é bom que partilhemos aqui de algumas ponderações. Um iPhone ou smartphone não são objetos destinados ao público infantil. São antes um instrumento de trabalho e socialização que permite múltiplas possibilidades interativas e acesso irrestrito a uma vasta gama de portais, aos quais não temos como controlar. Como adultos, no entanto, temos algum discernimento dos riscos em jogo, o que não é o caso das crianças.
Uma criança não necessita de um smartphone. Ele não responde às suas necessidades de brincadeira e interação no mundo presencial, além de representarem quase que um passaporte de acesso direto a conteúdos da vida adulta, a que as crianças ainda não têm maturidade para enfrentar.
Defensores do uso das tecnologias podem argumentar que hoje em dia é preciso que haja um investimento em letramento digital, desde cedo. Também aqui há ressalvas. É fato que a linguagem digital faz parte de nossa realidade. No entanto, portar um smartphone próprio equivaleria a dar um carro na mão de alguém que, antes, precisa aprender a andar, a pedalar com destreza, fortalecer os músculos das pernas, ganhar fôlego, entender as engrenagens das interações interpessoais e arcar com as responsabilidades de eventuais maus usos desta tecnologia.
No lugar de pais, é importante percebermos que nem todo pedido formulado configura-se como um desejo de fato. Muitas vezes a criança quer sondar o terreno, ver como pensam seus pais, observar que argumentos eles se utilizam para sustentar ou não suas decisões. Trata-se de um teste. A criança quer saber porque não deve ter um celular e entender-se segura com a decisão dos adultos responsáveis por ela. Por vezes, uma resposta coerente e segura é o suficiente.
Nem todo pedido é formulado com a intenção de ser atendido, é bom que se diga. Pensemos no Papai Noel. Quando uma criança começa a se questionar sobre sua existência, ela faz perguntas, o que não significa que deseje a confirmação imediata e unívoca de que “não, ele não existe”. Ela está em dúvida, questionando as evidências, colecionando pistas para elaborar suas conclusões a seu próprio tempo. Que possamos, como adultos, sustentar esse tempo de investigação, sustentar a dúvida sobre a existência do Papai Noel, como também o pedido por um celular.
Tanto no caso do celular como no do Papai Noel, trata-se de um ensaio para o crescimento, um desejo sempre ambíguo, povoado por quereres e desistências, pela vontade de crescer e de poder esticar a infância um pouco mais.
Há ainda um terceiro elemento que diz respeito ao status que envolve possuir um celular, especialmente um iPhone, e sentir-se valorizado por isso. Quantas pessoas no Brasil têm condições de ter um desses? Aqui, ele se torna claramente um objeto fetiche, símbolo de posição social e muito mais a serviço da ostentação do que de uma suposta necessidade.
Ao final de toda essa argumentação, em que reafirmamos a nós mesmos o porquê de não dar um smartphone a uma criança, sugiro que reformulemos a pergunta que nos foi apresentada e a devolvamos para nossos pequenos interlocutores: afinal, porque os pais da Fulana deram a ela um iPhone?
O que será que eles nos diriam?
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