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Por uma escola menor

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 13 de mai. de 2021
  • 6 min de leitura

Antes de falar da escola em termos de tamanho ou alcance - menor, maior - é preciso nos determos um instante sobre o sentido dessa proposição. Poderíamos pensar a escola também em outros termos, estabelecendo um contraste, desta vez, não de tamanho, mas de localização. Então, falaríamos de uma escola de margem ou periférica, em oposição a outra, bem centrada e já estabelecida.



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Ou ainda, de uma escola bem estruturada, sólida e outra, sempre em vias de se refazer; uma que exercesse o domínio sobre seus fazeres e linguagens, sempre majoritários, e outra - ou outras tantas - mais atentas às influências do fora, das ruas, dos acontecimentos extra muros que se fazem presença nos corpos que circulam - entram e saem - por seu perímetro.


Volto à questão do tamanho. Quando Deleuze e Guattari, importantes pensadores franceses, escrevem sobre a obra de Kafka, apontam-na como uma literatura menor. Isto implica em afirmar que tal literatura não se enquadra no fazer literário consolidado da época, mas que, ao se apresentar enquanto escritura dissonante, promove neste terreno uma torção inédita, a princípio sem nome, apesar de já produzir em seus leitores um efeito de estranhamento.


Uma literatura menor, neste caso, arranha, produz ruídos nos modos dominantes de fazer, estremecendo-os, mas se assim o faz, é mais por necessidade do que pela vontade de se posicionar sob a luz dos holofotes. Trata-se de uma escrita necessária, vital, e neste registro, escapa às regras da literatura canônica para se produzir estrangeira em sua própria língua, instaurando aí um território anômalo. É assim que em sua menoridade, quase intuitiva, nos apresenta a uma escrita sensorial, desvencilhada da aposta na figura de um narrador coeso e coerente para criar a experiência de vivê-la de corpo inteiro, de senti-la.


Ao ler Kafka, não o fazemos só com os olhos, senão por inteiro. Somos tomados pelos corredores de seu emaranhado narrativo que nos deixa atônitos pela falta de um sentido condutor da experiência - justamente o que permite que sintamos no corpo a aflição de acordar como um inseto gigante ou de ser eternamente acusado por um crime, de que não se tem conhecimento de causa, como acontece em A metamorfose e O processo.


Além da experiência sensorial, tal literatura emerge pelas bordas, produzindo não apenas uma torção na relação entre leitor, narrador, autor, como também uma desterritorialização da língua. No caso, Kafka era um judeu que, como tantos outros, abandonou o tcheco, língua predominante em Praga, cidade onde nasceu, para adotar o alemão como língua materna.


A sobreposição do alemão ao tcheco em sua escrita, traz uma conexão imediata entre elementos individuais, sociais e políticos daquele contexto, assim como a escolha por enredos surreais e distópicos, permeados por labirintos burocráticos inatingíveis e pela despersonificação dos personagens, que nos lança de uma vez ao absurdo daquele universo, no qual o menor não se afirma como demérito literário. Ao contrário, o menor, aqui, reitera o abandono da intenção de produzir, pela escrita, um sentido único à experiência, bem como de apresentar o narrador como figura semelhante a um deus onisciente, que tudo sabe, que tudo vê. O narrador kafkiano caminha conosco no escuro, atravessando vielas e quebradas, diante das quais apenas podemos intuir: não há garantia de chegada.


A estas características, somam-se outras: não há maneira única, nem portão principal ou tampouco porta da frente para nos aproximarmos de sua obra. Ela é, em seu conjunto, múltipla e ramificada - puro rizoma - aberta a N possibilidades de acesso e de afecções.


Vale reafirmar que não estamos diante de uma obra hermética, fechada em si mesma e cujo significado maior e oculto, será revelado ao final, como se estivéssemos diante de um roteiro planejado para capturar e direcionar a atenção dos leitores. Não. A obra menor não se justifica pela promessa de um final apoteótico ou totalizador, mas, justamente, por seu meio, o processo, que nos faz enveredar pela sucessão de acontecimentos, também eles menores. Nesta obra “entra-se por qualquer lado, nenhum vale mais do que outro, nenhuma entrada tem qualquer privilégio, mesmo se é quase um beco, uma ruela ou em curva e contracurva”, dizem Deleuze e Guattari.


Assim, a obra menor ganha consistência a partir dos encontros múltiplos que estabelece com seus leitores, de modo que também as variadas maneiras de ler e de se deixar afetar pela experiência, compõem os sentidos dessa literatura de margem. O experimental, aqui, refere-se aos modos de se encontrar com a vida e com o vivido, nossos portais de afecção.

Ainda de acordo com Deleuze e Guattari, muitos são os caminhos possíveis para este encontro, exceto um: o caminho do significante único, o Grande Caminho, o retilíneo, aquele traçado de antemão e que se pretende universal.


O que interessa a uma literatura menor é o contato com a matéria literária que se cria no próprio ato da escritura que, em sua imanência, instaura linhas de fuga desterritorializadas de sentidos plenos. Afirma-se aqui, a possibilidade de construir caminhos singulares, a partir de direções intuitivas que se deixam afetar pelo não entendimento racional do que ali se passa.


Pois bem, e o que a escola tem a ver com tudo isso?


Se levarmos em conta que o empreendimento moderno e regulador das aprendizagens caminha, justamente, por este caminho dito maior, único e retilíneo, veremos que muitas podem ser as contribuições de uma literatura menor a uma escola que, ao criar espaços de experimentações, também se libera para a produção de novos e ramificados sentidos.


O que temos por ora é a entrada pelo portão da frente e a saída única, direto para o vestibular: caminho das garantias instituídas no qual investe a escola. Investe também em muita publicidade - a publicização de seus fazeres pela via do discurso - enfatizando, sobretudo, seu final apoteótico, planejado e previsto: o ingresso nas melhores faculdades, dentro e fora do país.


É como se todo seu processo - seu meio, o precioso fazer cotidiano - fosse mero instrumento e se justificasse somente como passe de saída. Como se o meio fosse puro pretexto para a produção da Grande Narrativa, a trajetória de sucesso que só se legitima com o ingresso na faculdade.


E então nos perguntamos sobre o lugar da multiplicidade, dos caminhos sinuosos, dos encontros pelo meio, como campo de forças e de imanência, onde as vidas interessantes se constituem porque em processo. Tudo isso, subtraído em nome da grande fórmula de sempre: uma escola para o futuro.


Tal qual ocorre à literatura, também uma escola menor se afirma pela valorização daquilo que se passa entre, composto da prática cotidiana, da criação de passagens e de possibilidades de viver e se recriar a cada dia, alimentando o desejo e o processo de aprender. Sua validade, portanto, não se anuncia na saída, como promessa de um futuro de sucesso, mas em cada pequeno passo, passos menores, pequenas e fundamentais conquistas.


A Grande Escola, por seu lado, investe fortemente na Grande Narrativa: ela vende garantias de futuro e grand finales. Neste modo de operar, a experimentação cede lugar às práticas intencionais de ascendência e ascensão rumo a um patamar supostamente superior a todos os outros. É da busca de um futuro que se trata, mas não daquele a ser construído por seu protagonista, senão outro, já preparado e somente à espera de sua chegada: um futuro terceirizado e ideal.


Nesta Escola Maior nada acontece por acaso: a brincadeira e a literatura não valem por si mesmas, mas como instrumento para alguma finalidade utilitária. Brinca-se para aprender, lê-se para tornar-se culto, faz-se amigos para ampliar seu network, estuda-se línguas para adquirir uma boa posição no mercado de trabalho - que, por seu lado, dá pistas de estar em processo de transmutação.


Nesta Escola Maior, não falamos às crianças e às suas possibilidade de vir a ser, mas produzimos, de largada, pequenos adultos idealizados, desde cedo engajados aos desafios de um mundo já posto, ainda que em ruínas. Retiramos de cena, portanto, toda sua possibilidade de invenção de um mundo que pulsa e no qual vale a pena investir.


Daí a necessidade de pensarmos em escolas menores, na medida em que estas falam à urgência de liberar a infância - e cada criança singular - do desejo colonizador dos adultos, que veem seu mundo ruir, mas insistem em dar continuidade a um empreendimento que nos dá todos os sinais de colapso.


Precisamos de escolas comprometidas com a fabricação de mais adultos adaptados a este mundo capenga? - é a pergunta que não para de ressoar. Se não, seria o caso de investir na possibilidade de criar outras propostas, com entradas e saídas menores e singulares e que possam dar vazão aos desejos emergentes. Tal escola pode ser uma aliada aos futuros em devir, desde que, à moda da literatura de Kafka, constitua-se em sua menoridade - tanto em escala como pelo cultivo de inventividades.


Que esta outra escola pratique a abolição da linha única de desejos capturados, que servem à lógica da linha de montagem, por não saber fazer diferente. Que nela se possa brincar por brincar, tornando-se permeável ao que de novo se desenha exatamente ali, na irregularidade de seu chão. Uma escola menos capturada pelas narrativas do marketing, na mesma medida em que se compromete com os passos cambiantes das vidas que sustenta.


Por fim, proponho aqui uma brincadeira sonora: repita em voz alta a palavra menor, muitas e muitas vezes e veja o que acontece. É de uma escola assim que precisamos.





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© 2022 Marta Picchioni

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