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Quando encaminhar uma criança a um especialista?

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 11 de nov. de 2021
  • 3 min de leitura

Outro dia, uma amiga contava que na escola em que seu filho estuda, é prática comum encaminhar os estudantes para serem avaliados por especialistas quando o desempenho escolar, cognitivo ou emocional, não corresponde ao que seria o esperado para a faixa etária. Assim, quase a metade das crianças daquele grupo já havia sido encaminhada para avaliação ou acompanhamento fonoaudiólogo, psicólogo ou psicopedagógico.



imagem: Dan Mountford


Na maioria dessas avaliações, ela dizia, o resultado era inconclusivo, ou seja, não havia diagnóstico específico ou prescrição que se dirigisse à criança em questão, o que acabava por colocar em xeque o próprio pedido da escola. Afinal, se encaminhar alunos aos especialistas outrora foi prática de exceção, o que sustentaria a mudança que a torna, agora, uma espécie de prática sistemática?


Curiosamente, saber que não havia nada de “errado” com as crianças encaminhadas, ao contrário de gerar alívio nos envolvidos, produziu sensação de angústia ainda maior, como se fosse preciso encontrar um nome ou diagnóstico que pudesse explicar o motivo pelo qual determinada criança não se enquadra nos moldes previstos pela escola.


A preocupação com o desempenho e a saúde mental de crianças e adultos tem sido uma tônica de nossos tempos, acentuada pela pandemia, que nos exigiu restrição do contato social e o medo de que tenhamos perdido certas habilidades cognitivas. Desse modo, muitas ações escolares passaram a se centrar na ideia de “recuperar o tempo perdido”, como se o tempo de pandemia não tivesse sido, também ele, um tempo vivido.


Fazer do encaminhamento das crianças aos especialistas uma prática corrente revela que a questão mental ou psíquica é tratada por nós como um evento individual e que diz respeito primordialmente ao sujeito. Muitos de nós ainda desconsideram que o subjetivo se produz em um contexto mais amplo, que é aonde acontece toda uma rede de relações.


Quando tratamos de crianças - pessoas em desenvolvimento - tal constatação ganha contornos ainda mais vibrantes, pois uma criança que sofre atualiza um sintoma que é sempre produto de uma formação social.

Neste ponto, as contribuições de Félix Guattari são preciosas: ao tratar do tema da saúde mental ele propõe que o façamos sob uma perspectiva ecológica, transpassando a esfera ambiental até a subjetiva.


As três ecologias falam de uma relação transversal entre ambiente, relações sociais e subjetividade. Neste plano de encontros, os sujeitos já não podem ser concebidos como seres intracapsulados e desconectados do meio em que existem, de modo que as relações entre família, escola, amigos, trabalho, contexto político e econômico, etc, implicam na produção de subjetividades que podem se desenvolver de maneira sustentável ou, ao contrário, tóxica.


Daí concluímos que encaminhar uma criança a um especialista é atuar considerando apenas a ponta do iceberg ou a camada mais imediatamente perceptível: a manifestação sintomática que se atualiza no corpo da criança, mas que implica todas as outras esferas em que ela está inserida.


Assim, escola, família e demais instituições voltadas ao atendimento das infâncias e das juventudes devem se implicar de modo ativo na produção de relações mais ecológicas e sustentáveis, permitindo que relações de alteridade possam emergir a partir dos encontros reais e para além do modelo único.


Saem de cena o saber especialista em prol de uma prática mais abrangente e inclusiva, em que todos caibam a seu modo. Se a produção das subjetividades é sempre efeito de um agenciamento que opera em rede, a tarefa que nos compete é cuidar dessas relações, presentes no contexto mais amplo.


É preciso que nos tornemos agentes polinizadores que atuam nas três esferas, de modo que o problema do sujeito é também um problema de toda sua rede.



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© 2022 Marta Picchioni

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