Quando o medo de não sentir dor faz doer ainda mais
- Marta Picchioni

- 7 de out. de 2021
- 4 min de leitura
O homem que teme o sofrimento já está sofrendo pelo que teme.
Michel de Montaigne
Em tempos onde temos evitado a todo custo afirmar algum tipo de sofrimento, os livros da coleção sul coreana It’s Okay to Not Be Okay ousam, ao escapar do estereótipo considerado adequado a uma literatura infantil. Composto por cinco títulos, a coleção não se furta de tocar em feridas humanas e temas considerados difíceis, por meio de textos e ilustrações impactantes.

ilustração d'O menino que se alimentava de pesadelos
Indo na contramão de uma literatura que se pretende cada vez mais didática, a coleção surpreende tanto pela qualidade dos livros como pela coragem em sustentar tal escolha, o que, numa primeira impressão, pode causar estranhamento, já que não tenta apresentar às crianças um mundo harmônico nem barateiam as dificuldades da vida.
O Menino Que Se Alimentava de Pesadelos, Criança Zumbi, Em Busca da feição Real são alguns títulos que trazem enredos sobre medos, desencontros, falta de amor ou seu excesso, como no caso d'A Mão e o Tamboril, que conta a história de uma mãe que para demonstrar o amor que sente pela filha, jurou que lhe daria de tudo e tanto, que a menina acabou por se tornar uma criança incapaz de agir no mundo por conta própria, dependendo da mãe para tudo.
É compreensível que pais e mães desejem o melhor para os seus filhos e não gostem de os ver sofrer - quem em sã consciência gostaria? No entanto, sabemos que evitar o sofrimento é uma empreitada da ordem do impossível - ainda que tal argumento venha servindo de justificativa para retirar as crianças de contextos que as fariam sofrer.
O problema com este tipo de argumento é que, aos poucos, muitos contextos passam a ser considerados potenciais lugares de sofrimento: basta que haja um conflito à vista para que um incômodo se instaure, afinal. É assim que até a escola, lugar de convívio por excelência, passa a figurar como um espaço no qual as crianças não estariam a salvo.
Sabemos que muitos desses efeitos foram potencializados pela pandemia, na medida em que o lado de fora converteu-se num lugar de medo e perigo, pois é lá que vivem os outros e os vírus e onde corremos o risco de nos contagiar.
Porém, se por um lado a casa nos protege, por outro, ela também nos isola do contato com o outro e das experiências de alteridade. Diante da volta ao ensino presencial, muitas crianças e jovens passaram a demonstrar, não apenas ausência de vontade, como, em alguns casos, aversão por estar na escola e por ter de lidar com os desafios inerentes a este lugar social.
O medo, então, já não se restringe aos vírus, mas propagam-se como gremlins: medo de não ter amigos, de não dar conta das aulas presenciais, de abandonar o conforto da casa, de discutir com os colegas, de não se aceito e daí por diante.
O fora aparece como lugar desértico e ameaçador, onde os afetos não são bem recebidos, na medida em que escapam ao nosso controle. Assim, passamos a habitar - e a desejar - o aconchego quentinho do lar, doce lar, um lugar que de tão conhecido torna-se pobre em variação, e onde não há sofrimento, já que conseguimos prever e administrar a sucessão dos dias.
Ao que tudo indica, temos corroborado de muitas maneiras com o fortalecimento da ideia de que o convívio com o outro - o desconhecido - é arriscado e um potencial agente desestabilizador da ordem e do conforto emocional. Não deixa de ser verdade: conviver com a diferença pressupõe experimentar certo tipo de estranhamento e relações de conflitos que, por sua vez, são condição fundamental para que qualquer ato educativo venha a se efetuar.
Na contramão da vontade de retirar os mais novos desse plano comum de encontros, atualizado pelo estar na escola, é preciso sustentar a importância de colocar-se disponível ao encontro com as diferenças, afirmando forças e desenvolvendo modos de estar e de se compor com o panorama em questão. É a arte da convivência.
Nisto a literatura pode ajudar - e muito - na medida em que nos apresenta, pela proposição de uma vida fictícia, alteridades com as quais podemos dialogar e ampliar nossas próprias perspectivas - as lentes de fazer ver. Como diz Guimarães Rosa, é coragem o que a vida nos pede, coragem e entrega para estar nela, para dançar com ela, confiando que o plano dos encontros também se constitui de nossa presença e como rede de sustentação que opera a nosso favor.
E aqui volto à coleção It’s Okay to Not Be Okay pela coragem de fazer circular pela linguagem aquilo que, como sociedade, estamos com dificuldade de sustentar: o conflito, a dissonância, os sentimentos ambivalentes diante dos quais preferimos silenciar - o que dificulta aos mais novos que desenvolvam modos de estar diante dos maus encontros que certamente terão ao longo de sua vidas.
Não à toa, vemos crescer ainda mais a prática de medicalizar a vida e as crianças: parte de uma ação vista como necessária para apaziguar ou anestesiar as dores inerentes ao próprio viver.
Temos muito o que pensar, pois, ao contrário de nos anestesiar diante da vida e insistir na produção de certo tipo de felicidade, amaciada pela ausência de qualquer elemento perturbador da ordem, é preciso investir em desenvolver a capacidade de estar com a dor e senti-la caso ela apareça, já que, como tudo o mais, ela também está de passagem.
As crianças entendem isso e têm total capacidade de dialogar sobre assuntos complexos, desde que, é claro, não lhe usurpemos tal possibilidade.






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